quarta-feira, 3 de agosto de 2011

II Encontro Internacional de Docentes Beribazu - 2011

Impressões de dois alunos que tiveram a oportunidade de participar


Camila D’Avila e Manoj Geeverghese



Este evento, ocorrido em Vitória, foi a segunda edição do encontro idealizado com o intuito de integrar os docentes do grupo espalhados pelo mundo e que poucas oportunidades tem para se encontrar e trocar experiências. O encontro contou com a presença de mais de 80 docentes do grupo entre mestres, contramestres, instrutores, monitores e estagiários.



A importância do encontro internacional é justamente a oportunidade de reunir o grupo e poder ajustar e melhorar aqueles pontos “capengas”, aquelas questões que não estão muito esclarecidas. Sabe aquelas reuniões de família quando acontece alguma coisa, seja boa ou ruim, e senta todo mundo para discutir e resolver os problemas ou comemorar? É exatamente isso que esse encontro proporciona, na verdade é o que ele é: uma megarreunião de família. Além disso, cada encontro feito tem um tema específico, porque não dá para resolver 40 anos em 4 dias, afinal isso não foi a construção de Brasília.

Nesse II Encontro Internacional Beribazu em Vitória-ES, o principal ponto foi a i-den-ti-da-de. Qual a identidade do grupo? Como fortalecê-la? O que se perdeu? Como não perdê-la?

De acordo com a Wikipédia identidade é “o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos outros, quer diante do conjunto das diversidades, quer ante seus semelhantes”.

Nas palavras de Mestre Falcão o capoeira Beribazu é o “cara de pau” aquele que joga em qualquer roda, que joga angola e também regional, que se enturma em qualquer espaço, que não se intimida.



Ao longo do encontro muitos outros falaram de suas experiências de ser Beribazu. Mestre Luiz Renato fez um breve relato orgulhoso dos primórdios do grupo, do surgimento do conselho de mestres, conselho esse que não encontra similar no universo da capoeiragem, da mesma forma como sente orgulho de dizer que o grupo Beribazu cresce a cada dia com as próprias pernas sem aceitar filiação de nenhum capoeirista vido de outros grupos, ou se entra no grupo como aluno, ou não se entra de forma alguma.



Outros temas bastante discutidos foram os aspectos ritualísticos, documento que em breve chegará nas mãos de todos os capoeiristas do grupo e deverá ser bastante trabalhado em busca de uma unidade ritual. Seja na composição da roda, na bateria, no bater das palmas, nos toques do berimbau, na compra dos jogos, na cor da camisa para eventos, na utilização da logo do grupo, em tudo isso também há de se identificar o capoeira Beribazu.


Além desses pontos discutiu-se sobre a graduação que nada mais é do que uma consequência do esforço feito e não um objetivo; a necessidade dos alunos e dos docentes terem uma única referência e não uma multiplicidade de mestres e professores como seu referencial; a necessidade dos alunos e docentes terem unidade de pensamento, estarem em sintonia.

No entanto, diante de tudo o que foi debatido, o principal foi: precisamos preservar a identidade do grupo. Mas o que ela é?

Na nossa percepção de alunos, talvez limitada mas é o que podemos oferecer: a identidade do grupo é como uma família, com componentes muito diferentes um do outro, como toda família, mas que têm características em comum formando o que chamamos de grupo: o jeito de jogar, o jeito de conversar e se comportar, o respeito com aqueles que estão te passando o conhecimento, o respeito ao seu mestre, os mesmos princípios e valores.





Entre todos esses aspectos debatidos, discutidos, polemizados e todos os outros sinôminos que se possa encontrar, é importante ressaltar que todo corpo precisa de uma cabeça, no caso do grupo Beribazu essa cabeça é o conselho de mestres que deve ser respeitado e consultado sempre que necessário.

Os mestres presentes no encontro a cada momento frisaram que as ações do conselho são tomadas em prol de todo o grupo, e que há uma busca pela transparência das ações tomadas, inclusive com a criação do cadastro dos docentes do grupo para a facilitação de envio dos informes para todos os professores.

Para concluir esse relato deixamos nossos depoimentos:

“Poder conhecer pessoas que eu não conhecia, reencontrar outras, almoçar e jantar com o seu e vários outros mestres do grupo, conhecer a cidade, conversar com pessoas de vários núcleos, enfim... Foi maravilhoso.

Além da diversão, que tem que ter é claro, já que não dá para ser sério 24h, ocorreram várias polêmicas pelos assuntos discutidos, e eu acho importante um aluno ter a noção de que o grupo é muito mais do que você ir para o seu treino voltar pra casa e no final do ano, quem sabe, amarrar uma corda nova na cintura. Sem contar que a dimensão do grupo é gigantesca, só vendo pra saber.” (Camila D`Avila)

Chegando no ginásio da UFES, onde estava marcado pra começar o encontro, confesso que tive um pouco de receio, por não saber o que eu encontraria ali, mas quando cheguei me deparei com uma cena bastante familiar. Apesar dos rostos serem diferentes dos que estou acostumado a ver, o clima era exatamente o mesmo que encontro em Brasília, camaradagem, amizade, saudade, parecia o início de um grande encontro de família, clima que foi se confirmando ao longo do encontro.” (Maninho)

Após esse breve relato das nossas impressões sobre o encontro, resta apenas deixar aqui expresso o convite para que cada capoeirista Beribazu de Brasília abrace esse encontro que só tem coisas boas a acrescentar à nossa capoeira. Vamos junto com nossos mestres trabalhar para que o próximo encontro internacional, programado para acontecer em Brasília no ano de 2013 seja ainda melhor para todos nós membros da grande família Beribazu!

Ciríaco x A República


Breves considerações acerca da vida de um capoeira na virada do século XIX/XX

Marco Castilho Felício


Ciríaco Francisco da Silva, vulgo Macaco, talvez seja um nome conhecido entre os praticantes mais interessados na arte-luta. Natural de Campos (RJ), sujeito elegante – sempre acompanhado de sua bengala, ou “Santo Antônio 16”, como ele preferia chamá-la – entre grande parte dos cariocas de hoje, ele não passa de um anônimo (pesquisando no Google Maps, não é sequer nome de rua). Entretanto, nem sempre foi assim. Não que os dias tenham sido melhores. Aliás, pelo contrário. Mas por ironia do destino e por contradições peculiares de nossa história, quis o tempo que um negro pobre nascido em 1872, capoeira e morador dos cortiços do Rio de Janeiro tivesse seus dias de glória justamente num momento em que todas as suas qualidades, características e condições concretas de vida fossem, sob o ponto de vista do poder instituído, algo indesejável. Ciríaco era exatamente o que a nascente República queria extirpar da sociedade.

No dia 15 de maio de 1909, a revista O Malho publicou uma reportagem sobre o acontecimento que transformou Ciríaco numa celebridade: a luta do capoeirista contra o japonês Sado Miako, expoente do jiu-jitsu que ministrava ensinamentos da luta para a Marinha do Brasil, ocorrida no Pavilhão Internacional Paschoal Segreto. Nas palavras do próprio Ciríaco, eis o desenrolar da contenda: ”Cheguei em frente com ele, dei as minha cuntinença e fiz a primeira ginga, carculei a artura do negrinho, a meiada das perna, risquei com a mão p’ra espantá tico-tico, o camarada tremeu, eu disse: então? Como é? Ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim comigo, pruque eu imbolá, não imbolo. O japonês tremeu, risquei ele por baixo, dei o passo da limpeza gerá, o negrinho aturduou, mexeu, mas não caiu”. Durante a luta, Ciríaco percebeu as reações do público ao seu favor e continua no relato: “Eu me queimei e já sabe: tampei premero, distroci a esquerda, virei a pantana, óia o hóme levando com o rabo-de-arraia pela chocolateira. Deu o ar comprimido e foi cumê poeira. Aí eu fiz o manejo da cumprimentação e convidei o hóme p’ro relógio de repetição, mas o gringo se acontentou com a chamada e se deu por sastifeito”. O êxito na luta resultou em “dezoito mil réis” jogados pela platéia, entrevistas a jornais e demonstrações para estudantes do Rio de Janeiro.


Mas é necessário que o acontecimento seja analisado em seu contexto. Durante quase todo o século XIX, os debates parlamentares sobre o que fazer com a enorme massa de escravos, caso a escravidão acabasse, e em como fazer do Brasil um país racialmente branco, livre da presença negra, foram constantes no parlamento. O pensamento de Tavares Bastos, jurista e político atuante na segunda metade do século XIX, reflete bem isso. Defendia ele, sobre o estímulo à imigração européia, que: “O homem livre, o homem branco, além de ser muito mais intelligente que o negro, que o africano boçal, tem o incentivo do salário que percebe, do proveito que tira do serviço, da fortuna que enfim pode accumular a bem da sua família. Há entre esses dous extremos, pois, um abysmo que separa o homem do bruto [...] Cada africano que se introduz no Brazil, além de afugentar o emigrante europeu, era em vez de obreiro do futuro, o instrumento cego, o embaraço, o elemento de regresso das nossas indústrias”.

Na virada do século, discursos racistas que defendiam o branqueamento da população – o tal “racismo científico” – ainda encontravam forte repercussão entre as elites e o meio acadêmico. Oliveira Vianna, outro jurista e defensor da eugenia, referência nas primeiras décadas do século XX, acreditava que: “A miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca. Aqui o mulato, a começar da segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara exceção), acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é facilitada pela prevalência do ‘elemento superior’. Por isso mesmo, mas cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui”.

Na mesma onda, a cidade do Rio de Janeiro, desde os anos de 1880, sofria profundas transformações urbanísticas, orientadas por idéias higienistas, cujos principais propósitos eram a modificação/eliminação das áreas onde se encontravam as chamadas “casas de habitação” (casarões velhos que tinham seus quartos alugados para diferentes famílias) e principalmente os malfadados cortiços, maciçamente habitados por escravos e capoeiras. Não somente o espaço urbano, mas várias manifestações negras foram sistematicamente perseguidas pela ordem. Nesse momento, a capoeira, considerada pelo estudioso Luiz Sérgio Dias como “prática negra organizada”, é criminalizada e enquadrada no Código Penal de 1890. De maneira geral, a “turba” carioca está sob inconveniente assédio por parte do Estado – vide aí a Revolta da Vacina.

Cortiço no Rio de Janeiro da virada do século XIX-XX

Voltemos ao nosso camarada Ciríaco. Havia, de um lado, uma estrutura político-ideológica francamente racista, e de outro, uma cidade que, se na época das maltas era a “cidade-esconderijo” dos capoeiras e escravos, oferecendo sempre vias de fuga e espaços de socialização (como os cortiços), no período da contenda do ilustre personagem, ela apresentava-se como “cidade-inimiga”.

Surge então um paradoxo: apesar da ordem vigente, perseguidora dos capoeiras, existe também uma grande receptividade (ainda que problematizável, inclusive do ponto de vista das relações raciais) popular, mostrada na própria luta de Ciríaco e Sado Miako. Os jornais apresentavam discursos exaltando a capoeira, sobre sua importância como a “luta brasileira”, revelando indícios sobre manifestações de nacionalidade, fortemente exploradas anos mais tarde no governo de Getúlio Vargas (também sobre isso, ler O Jogo da Capoeira: corpo e cultura popular no Brasil, de Luiz Renato Vieira). A própria manifestação de apreço por parte da platéia durante e após o embate, de certa forma, demonstra isso, assim como a notícia de falecimento de Ciríaco veiculada até em Porto Alegre, em 21 de maio de 1912 (vitimado pela uremia). A capoeira tornava-se então a benção e maldição do Brasil, e em particular, do Rio de Janeiro.


Como nos lembra Jair Moura, Ciríaco e seu rabo-de-arraia certeiro colaboraram muito para a reafirmação da capoeiragem, desarticulada pela repressão no Rio de Janeiro desde as últimas décadas do século XIX. Se Mestre Bimba e Mestre Pastinha foram representantes que reivindicavam a importância da capoeira como grande manifestação cultural brasileira frente ao poder institucional e a setores da intelectualidade, Ciríaco é uma espécie de titã negro; é a cara de uma capoeira cujo único poder era seu enorme apelo popular.



Referências:


CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

MOURA, Jair. A Capoeiragem no Rio de Janeiro através dos Séculos. Salvador: JM Gráfica e Editora LTDA, 2009.

SILVA, Eduardo. Dom Obá II d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamnto de um homem de cor. São Paulo : Cia. das Letras, 1997.

THEODORO, Mário. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Brasília : Ipea, 2008.

VIEIRA, Luiz Renato. O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro: Sprint, 1998.