Mestre Luiz Renato Vieira
Em algumas épocas da história, parece que o tempo passa mais rápido. As transformações são mais profundas, envolvem o conjunto da sociedade - ou segmentos significativos dela - e deixam marcas que persistem no tempo e chegam às gerações seguintes. Nós, capoeiristas, que estamos vivendo o importante momento pelo qual nossa arte está passando, somos privilegiados: fazemos parte de uma geração que está criando um novo significado para a capoeira, que passa a ser identificada, até mesmo pelo leigo, como um fenômeno cultural brasileiro reconhecido em escala mundial. A capoeira rompeu as barreiras nacionais e tornou-se, definitivamente, aquilo que o sociólogo Renato Ortiz, muito acertadamente, denominou cultura internacional-popular.
Mestre Falcão e Mestre Luiz Renato - Paris, 1995 |
Em algumas épocas da história, parece que o tempo passa mais rápido. As transformações são mais profundas, envolvem o conjunto da sociedade - ou segmentos significativos dela - e deixam marcas que persistem no tempo e chegam às gerações seguintes. Nós, capoeiristas, que estamos vivendo o importante momento pelo qual nossa arte está passando, somos privilegiados: fazemos parte de uma geração que está criando um novo significado para a capoeira, que passa a ser identificada, até mesmo pelo leigo, como um fenômeno cultural brasileiro reconhecido em escala mundial. A capoeira rompeu as barreiras nacionais e tornou-se, definitivamente, aquilo que o sociólogo Renato Ortiz, muito acertadamente, denominou cultura internacional-popular.
Roda de Capoeira em Varsóvia - Polônia
Voltemos um pouco no tempo. Entre os anos 70 e 80 nós, capoeiristas, tínhamos algo de exótico. A própria capoeira era ainda vista como uma modalidade - ou melhor, uma manifestação cultural que buscava se afirmar como esporte - cujo lugar "natural" eram as comunidades mais pobres e periféricas. A prática da nossa luta em instituições mais respeitadas ainda causava certa estranheza e, de fato, muitas delas fechavam suas portas a ela. Era necessário, portanto, um grande esforço de "organização" da capoeira, dando continuidade à trajetória iniciada pelos capoeiristas da primeira metade do século XX.
Assim, esse período, as décadas de 70 e 80, ficou marcado como a época dos grandes projetos relacionados à capoeira, a maioria deles com algum grau de pioneirismo (embora houvesse muitas e importantes iniciativas isoladas anteriores): capoeira na escola, na universidade, para portadores de necessidades especiais, nos cursos de licenciatura em educação física, em institutos de reeducação de menores infratores, como terapia, como "ginástica brasileira", como objeto de dissertações e teses acadêmicas. Há, na literatura sobre a capoeira, inúmeros registros de trabalhos relevantes, em todas essas áreas e em algumas outras e não é nossa proposta aqui enumerá-los. O importante, por ora, é destacar esse momento de mudança na história contemporânea da capoeira. Foi nas décadas de 70 e 80, também, que a capoeira conquistou definitivamente seu lugar no cenário esportivo nacional, ainda sob a égide da Confederação Brasileira de Pugilismo, e obtendo reconhecimento de vários órgãos governamentais ligados ao esporte e à educação.
No início, as competições de capoeira assemelhavam-se às de outras modalidades, não considerando toda a riqueza da luta, reduzindo-a a um simples esporte de combate. Aos poucos, foi-se chegando a formas mais elaboradas e completas de avaliação dos capoeiristas e as competições ficaram muito parecidas com as próprias rodas de capoeira. Convém lembrar o papel das competições de capoeira dos Jogos Escolares Brasileiros (JEB's) nesse processo, como laboratório para a construção de uma visão mais global da capoeira.
É importante destacar que os anos 80 foram também a década da expansão nacional dos grandes grupos. Firmou-se esse modelo na organização da nossa arte-luta, apesar dos esforços de alguns pela adoção do modelo tradicional das federações. Esse, sem dúvida, foi o passo que mais se destaca na história contemporânea da capoeira: a consolidação da lógica da organização na forma de grupos, em que o professor ou mestre que se forma e organiza sua escola procura vincular-se a uma instituição já reconhecida no mercado da modalidade. Podemos, inclusive, discutir em que medida essa forma de organização contribui para preservar a diversidade e a riqueza cultural da capoeira e para o fortalecimento coletivo da luta como forma de resistência cultural.
Outra tendência importante a partir do início dos anos 80 foi a revalorização das tradições e dos "velhos mestres", juntamente com o fortalecimento dos grupos de capoeira angola, que ganharam muito espaço à medida em que a comunidade da capoeira começava a questionar os caminhos da desportivização. Iniciou-se, assim, uma trajetória de reafricanização da capoeira, principalmente nos centros mais tradicionais, que se refletiu em diversas linguagens próprias da capoeira: na musicalidade, na instrumentação musical e até mesmo na abordagem histórica dos pesquisadores, que passaram a enfatizar mais as origens africanas e buscar lutas ancestrais e "irmãs" da capoeira, como a ladja da Martinica.
O radicalismo nacionalista, anteriormente tão forte, passou a dar lugar a uma visão mais global da cultura e do processo de formação da capoeira, inserindo-a na história da resistência dos africanos escravizados e de seus descendentes mundo afora. Viu-se que a capoeira-esporte precisava ser vista como uma face da modalidade, mas que não se poderia reduzi-la ao seu aspecto desportivo. Essa abordagem culturalista, então, foi muito enfatizada a partir dos anos 80, quando as palavras "resgate" e "bagagem", passaram definitivamente a fazer parte do vocabulário comum dos capoeiristas.
É nessa perspectiva - como cultura, e não como modalidade esportiva - que a capoeira ganha o mundo definitivamente nos anos 90. Passada a fase da afirmação de sua riqueza no Brasil, a capoeira torna-se um fenômeno cultural de massa em escala mundial.
Costa do Marfim, 1998 |
Passou-se do perfil aventureiro do capoeirista que ia arriscar a vida no exterior nos anos 70 para uma visão estratégica, de conquista de mercados. Assim, atualmente não há grupo consolidado no Brasil que não tenha os seus representantes sediados no exterior. A capoeira é facilmente vista e reconhecida como tal em qualquer grande cidade do mundo, com algumas exceções. Já é possível ver, com certa facilidade, professores autóctones, formados por brasileiros, ensinando capoeira em seus países. Esse é o desafio que se coloca para nós, estudiosos e praticantes da modalidade: compreender a nova inserção da capoeira como fenômeno incorporado à cultura internacional-popular, em que em alguns momentos se destacam suas raízes brasileiras e, em outros, valoriza-se sua africanidade e seu potencial de crítica à cultura ocidental.
Precisamos, então, procurar entender essa expansão internacional no contexto da dinâmica da cultura mundializada. Apesar de suas fortes raízes brasileiras, a capoeira passa a ser vista, cada vez mais, como expressão de um desejo universal de liberdade.
Precisamos, então, procurar entender essa expansão internacional no contexto da dinâmica da cultura mundializada. Apesar de suas fortes raízes brasileiras, a capoeira passa a ser vista, cada vez mais, como expressão de um desejo universal de liberdade.
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VIEIRA, Luiz Renato. A capoeira e a cultura internacional-popular. Revista Praticando Capoeira, n. 18, set. 2002
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VIEIRA, Luiz Renato. A capoeira e a cultura internacional-popular. Revista Praticando Capoeira, n. 18, set. 2002
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