domingo, 26 de junho de 2016

A Capoeira e os Diálogos Filosóficos





Diálogos Filosóficos: 
Educação, aprendizado e crescimento na capoeira
Mestre Squisito e Professor Filósofo


Prefácio - Mestre Luiz Renato


Ao longo de quase quarenta anos de prática e trabalho com a capoeira, tenho tido a sorte e a honra de ter convivido com pessoas muito especiais, que valorizam o saber popular e que conseguem olhar o mundo de forma diferente. Gente que percebe a necessidade de transformar estruturas sedimentadas e arcaicas, da cultura à política, que sustentam um mundo de desigualdades sociais e que pretendem minar a pluralidade e a riqueza dos nossos modos de viver.

Mestre Skysito é uma dessas mentes inquietas e geniais que, felizmente, existem no mundo da capoeiragem. Com a vantagem adicional de, sendo capoeirista da raiz – com o pé sujo no chão da roda –, também possuir formação acadêmica e profissional exemplares.

Enquanto muitos fazem um grande esforço para levar uma vida dual, dividindo-se entre a capoeira e seus afazeres profissionais, Mestre Skysito nunca se contentou com isso. Seria muito convencional para ele... Sua trajetória revela um permanente esforço  no sentido de integrar a compreensão dos meandros das mandingas da capoeiragem com o mundo dos sistemas, fluxogramas, modelagens, governanças e gestões de qualidade.

Ele, como ninguém, sabe que a trajetória do mundo civilizado (pelo menos da maior parte do Ocidente) é, em parte, uma tentativa de ver ordem sistêmica e racional em um universo que se move de maneira muito mais complexa e multifacetada. Nunca o ouvi dizer isso, mas tenho certeza de que a capoeira foi uma grande fonte de experiências e saberes para seu exercício profissional. Afinal, em sua riqueza, a capoeira possui uma lógica de funcionamento complexa e intrincada e possui dinâmica de difícil apreensão.

Claro que me refiro, aqui, ao cenário mais amplo da capoeiragem, que transcende em muito a roda e o jogo. Falo do cenário em que transitam mestres, atletas, artistas, músicos e muitos outros que se identificam com a arte da capoeira em uma ou mais de suas infinitas facetas. A essa pluralidade de agentes, misturam-se os aspectos rituais, históricos e as inúmeras explicações que vêm sendo formuladas sobre o funcionamento e os processos de mudança existentes nesse universo. A tudo isso, temos chamado de teoria da capoeira, o resultado cumulativo de todo um esforço de explicação acerca da dinâmica desse universo cultural, envolvendo relações complexas e agentes diversos e hierarquizados, configurando o que nós, sociólogos, costumamos chamar de campo de poder, inspirados no mestre francês Pierre Bourdieu.

Muito se tem escrito sobre capoeira e suas formas de organização. Inúmeras dissertações de mestrado e teses de doutorado têm explorado a temática. Nos últimos dez anos, multiplicaram-se os estudos sobre o papel do Estado nos processos de organização e de valorização cultural da nossa arte-luta. O livro que neste momento tenho a honra de prefaciar, entretanto, tem natureza diversa.

Esses Diálogos Filosóficos têm a virtude de trazer para o debate, de maneira informal, um rico conjunto de temáticas que se relacionam com o universo social, cultural e político da capoeiragem na atualidade. Com a leveza de uma conversa, Mestre Skysito transita por temas como a necessidade de qualificação profissional de professores e mestres para lidar com as demandas da atualidade; a dinâmica da internacionalização da cultura; o processo de escolarização da capoeira e todas as suas contradições; a questão das tradições e dos antigos mestres da nossa arte; e muitas outras questões importantes e atuais.

Diálogos Filosóficos – Educação, aprendizado e crescimento na capoeira, elaborado pelo Mestre Skysito em co-autoria com Dolf Van der Schoot, conhecido como Professor Filósofo, é um livro de muitos méritos. Eu até diria mais do que isso. É um livro necessário. Estamos em um momento de inflexão na história da capoeira. Ao mesmo tempo em que o Estado volta seus olhos para a nossa luta e dá partida em uma série de processos (aos trancos e barrancos, é verdade!) de reconhecimento e valorização desse patrimônio, a comunidade da capoeira é chamada a refletir sobre suas formas de organização, suas práticas e seus valores. Talvez seja exatamente esse o ponto em que se encontra a maior relevância desses Diálogos Filosóficos: a contribuição que traz para a necessária e urgente autocrítica da comunidade de mestres, professores, pesquisadores e praticantes da capoeira.

De uma forma sincera, objetiva e desmistificadora, Mestre Skysito traz à reflexão temas como uma suposta essência libertária da capoeira. Como cientista social, ele sabe que fenômenos sociais possuem conteúdo e significado construídos pelas práticas de que resultam, e não são resultado de uma suposta essência a-histórica. Assim, explica Mestre Skysito, a capoeira é e sempre será o que fazemos dela. Ela ganha significados sociais e culturais de acordo com nossas práticas e com as relações de poder em que se envolve.

Esse é o tom do livro. Mesmo sendo, há muito tempo, conhecedor do talento e da sabedoria do meu amigo Mestre Skysito, fiquei, realmente, impressionado com a originalidade da proposta.

Tenho certeza de que temos, aqui, um marco! Um momento em que o capoeirista percebe que, para além da condição de resistência à opressão, há que se refletir sobre a maneira como devem ser trilhados os caminhos que se abrem.

Certa vez, ouvi de um grande mestre baiano, um baluarte da Capoeira Angola, Mestre Curió, a afirmação de que a mandinga não tem hora nem lugar: “Você tem que ter mandinga até para comer um bolo de carne”. Mestre Skysito, agora, nos mostra que temos que ter mandinga para repensar nossa mandinga. E, para isso, nada melhor do que um bom diálogo!

Parabéns, Mestre Skysito e Professor Filósofo. E obrigado por nos oferecer uma leitura tão instigante sobre nós mesmos e sobre o que fazemos.


Luiz Renato Vieira
Mestre de Capoeira – Sociólogo, Mestre e Doutor em Sociologia, com Pós-Doutorado em História Comparada. Professor da disciplina Prática Desportiva – Capoeira na Universidade de Brasília.