sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Os Velhos Mestres da Vadiação Baiana


Mestre Luiz Renato


Luiz Renato e Mestre João Grande em sua academia em NY, 1998.

Neste texto, pretendemos abordar alguns aspectos da capoeiragem baiana do início do século passado — principalmente dos anos 30 aos anos 50 — , a partir de informações obtidas junto aos chamados “velhos mestres”, alguns dos quais já falecidos, como os mestres Caiçara, Canjiquinha, Bobó, Ferreirinha, Paulo dos Anjos e Waldemar da Liberdade, também conhecido como Waldemar do Pero Vaz. Na realidade, para falar da capoeira baiana do início do século passado, seria necessário destacar a participação de figuras como Samuel Querido de Deus, Nagé, Aberrê, Juvenal, Barbosa, Onça-Preta, Amorzinho, Zacarias, Cabelo Bom e outros. Mas não é nossa proposta detalhar a vida e os feitos desses grandes capoeiras, neste momento. Daremos maior ênfase a alguns dos que fizeram a ligação da antiga capoeiragem baiana com a realidade que vivemos, hoje em dia.


Os "velhos mestres" da capoeira da Bahia são considerados os guardiões das tradições da capoeira. É preciso notar que, em outros estados brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro, também encontramos velhos mestres, defendendo as tradições da nossa arte-luta, mas aqui nos referiremos somente a alguns dos mestres baianos. Quando falamos de velhos mestres, estamos tratando, na verdade, de pessoas que, ao longo dos anos, acumularam imensa experiência nas rodas de capoeira e na vida, tornando-se importantíssimas referências para os capoeiras das gerações mais novas. Esses personagens da história da capoeira vêm sendo redescobertos e valorizados. Muitos ainda vivem em grandes dificuldades e alguns outros chegaram a morrer na pobreza, como mestre Pastinha. Esperamos que, com o grande crescimento que a capoeira vem apresentando, esses verdadeiros mestres tenham seu lugar reconhecido na história da cultura popular brasileira.


Com Mestre João Grande no forte Santo Antônio. Salvador, 1988.
 A maioria dos velhos mestres baianos representa a escola da capoeira Angola (embora alguns se recusem a aceitar a dicotomia Angola/Regional) e entre eles podemos citar: Bobó, Caiçara, Canjiquinha, Ferreirinha, Paulo dos Anjos, Waldemar do Pero Vaz, João Pequeno, Gigante, João Grande e Curió. Dessa lista, infelizmente, apenas os quatro últimos ainda estão vivos.
É muito difícil estabelecer, rigorosamente, "linhas de filiação", quando falamos dos velhos mestres, uma vez que no tempo em que a maior parte desses grandes capoeiras iniciou-se na luta, a prática era informal e, em alguns casos, realizada nas ruas de Salvador, aos domingos ou nas festas de largo. No entanto, mestre Pastinha aparece como a mais importante figura nas tradições da Angola e referem-se a ele como "o mestre que me ensinou", entre outros, os mestres: Curió, João Pequeno e João Grande. Na realidade, além de ter sido um respeitado mestre, Pastinha se destaca como o principal articulador da capoeira Angola junto aos poderes públicos de sua época, obtendo apoio dos órgãos de turismo e outras instituições estaduais e municipais. Alguns dos velhos mestres ressaltam seu papel como "presidente da capoeira", principalmente em virtude de sua atuação na fundação do Centro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941, com o objetivo de reunir alguns dos melhores capoeiristas da Bahia. Além de mestre Caiçara, contribuíram para a organização do Centro Esportivo de Capoeira Angola, Pastinha, Traíra, Pivô, Waldemar da Liberdade e outros capoeiras da época.

Mestre Ferreirinha entrevistado por Mestres Itapoan, Luiz Renato e Eziquiel
Santo Amaro da Purificação, 1989.

Os mestres Canjiquinha e Caiçara foram discípulos de Aberrê, que Caiçara descreve como "um filho de escravos trazidos da África". Bobó e Ferreirinha afirmavam ter aprendido capoeira com mestres de Santo Amaro da Purificação, respectivamente Benedito de Santo Amaro e Antônio Asa Branca. Mestre Gigante, também conhecido como Bigodinho, aprendeu a arte com um dos capoeiristas mais famosos de seu tempo, o Cobrinha Verde, tendo depois praticado no Centro Esportivo de mestre Pastinha. Freqüentou por muito tempo, também, a academia de Capoeira Regional de mestre Bimba que, segundo fomos informados, o considerava "o melhor tocador de berimbau da Bahia". Mestre Paulo dos Anjos, recentemente falecido e um capoeirista mais jovem entre os velhos mestres, foi aluno de mestre Canjiquinha. Mestre Waldemar do Pero Vaz, tendo iniciado a prática da capoeira em 1936, já com 20 anos de idade, foi aluno de capoeiras que figuram como verdadeiros mitos na nossa memória: Canário Pardo, Piripiri, Talavi e Siri-de-Mangue. Mestre Waldemar tem um papel particularmente importante na história da capoeiragem baiana porque, antes de Pastinha se destacar como o principal organizador dos angoleiros, já figurava como liderança que unia os “bambas” da capoeira tradicional, não vinculados à escola de mestre Bimba.


Luiz Renato e Mestre Waldemar (1914-1990)
Entrevista realizada em 1989 em Salvador.

Naquela época, o aprendizado ocorria de maneira vivencial; na maioria dos casos, na própria roda de capoeira. Assim, o iniciante aprendia com os jogadores mais experimentados, informalmente. Embora, já em 1932, tenha sido fundada por mestre Bimba a primeira academia, o aprendizado informal da capoeira, nas ruas de Salvador, predominou até meados da década de 50. De acordo com mestre Gigante, "Naquela época não havia academia. Somente no dia de domingo é que tinha a vadiagem na rua" .

Mestre Waldemar, por exemplo, como já afirmamos, organizou por muitos anos a roda mais famosa de Salvador, no Corta-Braço, na Estrada da Liberdade. Comparando o aprendizado informal de sua época com os treinamentos de capoeira nas academias atuais, observou: "A roda na Liberdade era ao ar livre, perto do arvoredo. Eu fazia o ringue na sombra e botava a rapaziada pra jogar. Depois eu fiz um barracão de palha grande, e vinha tudo quanto era capoeirista da Bahia”.


Assim, o jogo da capoeira aparecia integrado ao cotidiano do povo, como a "pelada". Embora existissem os "cobras", não havia uma rigorosa exigência do domínio da técnica do jogo, mas apenas o conhecimento do ritual da roda e o respeito ao mestre e aos mais antigos. Mesmo havendo os pontos tradicionais de reunião dos capoeiras, principalmente nos domingos à tarde, qualquer ocasião em que se encontrassem era propícia à realização de rodas. Portanto, os bares, as praças, os mercados e as feiras, freqüentemente, eram palco de rodas inesperadas. Eram também comuns as rodas realizadas com o objetivo de recolher dinheiro dos assistentes para ser distribuído entre os capoeiristas. Em alguns locais, estes recolhiam com a boca as cédulas lançadas ao chão da roda, executando complexos movimentos de destreza e equilíbrio sobre as mãos ou, simplesmente, "passando o chapéu" entre os assistentes.

Sendo uma prática comum no cotidiano da época, a capoeira não exigia nenhuma indumentária especial: o praticante participava calçado e com a roupa do dia-a-dia. Nas rodas mais tradicionais, aos domingos, alguns dos capoeiristas mais destacados faziam questão de se apresentar, trajando refinados ternos de linho branco, como era comum até meados deste século. Vejamos o que disse mestre Paulo dos Anjos sobre o assunto: "Seu Waldemar ia pra roda de capoeira vestido de linho diagonal, uma fazenda que não era qualquer um que vestia não. Chapéu Rameson 3x e sapato da Clark. Você que fosse jogar com ele e, por desacerto, sem querer, você encostasse seu pé sujo no linho diagonal de Waldemar. Não era nem louco!".


São muito comuns, na literatura e nos depoimentos, as referências ao traje branco dos capoeiristas do passado, o que se relaciona com a tradição de que capoeira que é bom não cai, nem permite que o outro lhe encoste o pé. No entanto, esse traje não chegou a caracterizar uma vestimenta específica para o jogo. Apenas mais tarde, no final da década de 50, as academias de capoeira passaram a adotar uniformes diferenciados pelas cores das camisetas e das calças, embora mestre Pastinha já adotasse o uniforme amarelo e preto, desde os anos 40.

Aula de Capoeira Angola com Mestre João Gande, NY.
Os ambientes freqüentados pela maioria dos capoeiristas e o contexto em que aconteciam as rodas, eram fatores que colaboravam para os diversos choques com a polícia, embora o último período de ferrenha perseguição aos capoeiras baianos tenha sido a década de 20, quando foi chefe de polícia, Pedro de Azevedo Gordilho, conhecido como Pedrito. Então, a partir da década de 30, foi deixando de existir uma atitude repressiva, especificamente contra os capoeiristas, mas a polícia continuou criando problemas para muitos. Entre os mestres mais idosos da Bahia, há os que se referem, orgulhosamente, aos conflitos de que participaram, inclusive com a polícia, ilustrando o discurso com suas cicatrizes de facadas e tiros, como mestre Caiçara. Mas Canjiquinha também ressalta a perseguição de que foi vítima: "A gente jogava capoeira nos dias de domingo. Não tinha academia e quando aparecia a polícia a gente tinha que sair correndo".


Por outro lado, há casos em que a própria polícia ajudava a "manter a ordem" nas rodas, o que nos mostra como sempre foi complexa a relação da capoeira com as instituições e o poder no Brasil. Vejamos, por exemplo, o que afirmou mestre Waldemar, sobre a roda que organizava na década de 40: "Uma vez, eu fui na delegacia da Liberdade pedir ao delegado que mandasse polícia para olhar a roda que eu fazia. Tinha muito capoeirista aparecendo lá e criando confusão. Ele disse que não precisava não: ‘mande seus alunos dar uma cipoada neles e trazer aqui’".


Entrevista com Mestre Bobó. Salvador, 1988.
 Os mestres eram figuras altamente respeitadas, destacando-se dos demais pela habilidade no jogo, nos toques do berimbau e nas cantigas. Alguns dos mais famosos que mantinham rodas de capoeira eram mestre Bimba, que fazia roda aos domingos no Alto de Amaralina; mestre Waldemar do Pero Vaz, com sua roda na Estrada da Liberdade; mestre Pastinha, que reunia os capoeiristas no Largo do Pelourinho e mestre Cobrinha Verde, com sua roda no Chame-Chame. Os mestres ocupavam lugar especial nas rodas de capoeira. Era sempre o mestre que iniciava e encerrava a roda, fazia recomendações nos cânticos e podia comprar qualquer jogo que estivesse acontecendo, escolhendo qualquer capoeirista para jogar. Além disso, não se permitia comprar jogo de mestre: apenas outro capoeirista, na mesma condição, poderia fazê-lo. Os mais antigos ressaltam, insistentemente, o fato de que nas rodas, hoje em dia, os mestres não são tratados com a distinção dos outros tempos. Nas palavras de mestre Curió: "Tem alunos que chegam na roda e tomam o berimbau do mestre, tomam o berimbau de minha mão. No meu tempo não tinha isso não. O mestre dava se quisesse. E quando o mestre estava jogando, o aluno não podia entrar".
 
É importante ressaltar que, embora questionem algumas atitudes dos capoeiras da atualidade — como, por exemplo, o desrespeito aos rituais tradicionais —, os velhos mestres, em geral, demonstram grande admiração pelo crescimento e reconhecimento que a capoeira vem alcançando. De uma certa forma, podemos dizer que é a concretização de seus sonhos, embora ainda haja muita coisa a fazer e a resgatar do passado.


Temos, realmente, muito a aprender com esses mestres. Entendemos que a história não é a ciência do passado, mas a chave para que possamos, conhecendo o passado, construir um futuro melhor. Há fundamentos essenciais que podemos aprender ouvindo, observando e conhecendo as histórias e estórias desses importantes personagens da nossa história e da nossa cultura.

--------------------------
Referências
VIEIRA, Luiz Renato. O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no Brasil. ed. 2. Rio de Janeiro: Sprint, 1998.
______. Os velhos mestres da vadiação baiana. Revista Capoeira, n. 7, 1999.