segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Para uma Arqueologia da Capoeiragem Baiana


Mestre Luiz Renato Vieira




Há, de fato, uma nova e riquíssima safra de publicações sobre capoeira no mercado. A história, os rituais, as tradições e as trajetórias pessoais e profissionais dos mestres nunca foram tão estudados. Em alguns casos, temos pesquisas acadêmicas, que resultam de anos de estudos aprofundados e consistentes. Já outros trazem relatos pessoais e descrições de percursos biográficos, pontilhados de experiências e vivências que precisam ser levadas ao público interessado na nossa luta. Alguns poucos trabalhos recentemente publicados seguem, ainda, um outro caminho, de recontar as histórias da capoeira pela ficção, pelo romance.


Entretanto, como esse nosso universo da capoeiragem é muito rico, existe ainda um outro tipo de registro. Deste, conheço apenas um representante. Falo de um estilo muito peculiar, que reúne a riqueza e a precisão da informação histórica e da análise do acervo e, ao mesmo tempo, a sensibilidade na investigação e a experiência pessoal, vivida no fazer cotidiano do mundo da capoeiragem e de outras tradições populares.


Dedico esse espaço a um brevíssimo comentário sobre o livro Capoeiras – Bahia, Século XIX: Imaginário e Documentação, Vol. I (Salvador: Instituto Jair Moura, 2005), de Frederico José de Abreu. Frede Abreu é figura conhecida, não só nas rodas da Bahia, mas na capoeiragem por esse mundo afora. Está entre os pesquisadores (ele não gosta dessa expressão, que prefere deixar para os acadêmicos e “especialistas”!) mais conhecidos e produtivos no debate atual sobre a capoeira.


No mundo da capoeira e no seio da universidade, ainda não tive a oportunidade de conhecer alguém que concilie tão bem três importantes elementos nos seus escritos: a espontaneidade, a densidade das informações e a riqueza estilística e literária. Frede Abreu escreve como fala. Por isso, ler seus livros é como ouvir causos. É ver, consignados na palavra escrita, anos de experiência e de dedicação à preservação da memória e das tradições do povo.


Em seu novo livro, Frede parte da constatação de que “adquiriu autoridade a idéia de que teria sido inexpressivo o movimento da capoeira na vida baiana do século XIX, nela introduzido por força da migração Rio-Bahia”. De fato, sobre a capoeiragem na Bahia do século XIX, até bem pouco tempo atrás, apenas se conheciam os escritos de Manuel Querino e de Antônio Vianna. Mais recentemente, lembra Frede Abreu, esse universo veio a ser explorado em profundidade por autores como Jair Moura, Luis Sérgio Dias, Carlos Eugênio Líbano Soares e Antônio Liberac.


O livro de Frede Abreu percorre temas como a presença da capoeira e dos capoeiras nos quilombos e em outras passagens da história, como a Guerra do Paraguai e a Independência da Bahia. A respeito do Dois de Julho, Frede Abreu faz análises sobre o conhecido livro que contém os manuscritos do Mestre Noronha, dignas de compor qualquer tese sobre análise do discurso e método de interpretação histórica (desculpe, Frede!). Interessantíssimas suas constatações de que Noronha, em seus escritos sobre o Dois de Julho, não comete grosserias históricas nem falseia a verdade dos fatos. “Há sutilezas na sua intervenção”, diz Frede. Assim, Noronha situa o capoeira do século XIX em fatos históricos comprovados abrindo caminhos para ricas investigações futuras.


O livro é, de fato, de difícil síntese. Seu corte não é o tradicional, descritivo, temático ou cronológico. Lembra, antes, um processo mental bem mais complexo, aquele que preside as conversas, os relatos orais, entrecortados por lembranças, reminiscências, associações livres, questionamentos e instigantes indagações. Se o volume é riquíssimo na indicação de fontes documentais – todos sabemos que este é considerado o maior tributo de Frede Abreu à capoeira: a organização de um espetacular acervo – não é aí, na minha modesta opinião, que se encontra a melhor parte desse trabalho. Sustentando-se nessas “referências” e nesses suportes documentais da informação, Frede vai muito além: questiona, sugere, especula. Dá uma verdadeira aula de como é possível quebrar tabus e, pondo mais imaginação e criatividade nas interpretações históricas, ir muito além do que os estritos cânones científicos tradicionalmente permitem.


Seu olhar arguto impressiona. Se alguns temas passam despercebidos para a maioria dos pesquisadores, Frede investe na análise do mundo cultural das classes trabalhadoras com a precisão de especialista e com a sensibilidade que só a vida nos cantos e recantos da Bahia é capaz de ensinar. Assim, suas reflexões incluem os jeitos de falar, de se agachar (a passagem sobre a cocorinha é ótima!), uso de expressões e até os equívocos na construção da história da capoeira decorrentes da percepção do que era urbano e rural no Brasil do século XIX. Tudo alinhavado em um o texto de primeiríssima qualidade.


Corro o risco de usar uma figura por demais conhecida, mas não me ocorre algo melhor para concluir a reflexão sobre esse excelente trabalho de Frede Abreu. Que tipo de discurso pode nos servir melhor de metáfora para a elaboração articulada e inteligente de Frede senão o próprio jogo da capoeira? Reporto-me ao fato de que, na capoeira, entrecruzam-se diversas linguagens para compor, redimensionando cada uma delas, um todo complexo e rico em significados.


Num determinado toque de berimbau, ao som de certa cantiga e em um dado momento da evolução da roda, uma meia-lua tem um significado. Em circunstâncias diferentes, seu conteúdo pode ser outro, gerando, assim, uma reação diferenciada do capoeira com quem se joga. É, portanto, o conjunto que dá sentido aos elementos que compõem o jogo. Assim é o livro do Frede. As quadras cantadas, as interjeições proferidas nas rodas, os gestos, tudo assume um novo significado a partir de suas reflexões e indagações.


Mestre Luiz Renato e o pesquisador Frede Abreu. Recife, 2008.
Mais do que apreender as informações recolhidas e organizadas por Frede Abreu ao longo de uma vida de pesquisa, sejamos capazes de assimilar o alerta que o autor nos faz: de que não é possível compreender a capoeira e sua história sem se aprofundar na riqueza de suas linguagens e na multiplicidade de seus sentidos. 

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VIEIRA, Luiz Renato. Para uma arqueologia da capoeiragem Baiana: a pesquisa de Frede Abreu. Revista Praticando Capoeira, n. 32, nov. 2005.