quinta-feira, 15 de abril de 2010

Entrevista Inédita com Mestre Eziquiel


Mestre Luiz Renato

Mestre Eziquiel (em pé), com Mestre João Grande e Mestre João Pequeno
Foto: Luiz Renato - Forte Santo AntônioSalvador, 1988


DEPOIMENTO CONCEDIDO EM 25 DE JANEIRO DE 1989

O trecho do depoimento do Mestre Ezequiel (1941-1997) que ora divulgamos faz parte de um conjunto de entrevistas realizadas, entre 1988 e 1989, junto a capoeiristas formados por Mestre Bimba durante as pesquisas que resultaram na dissertação de mestrado em sociologia da cultura intitulada Da Vadiação à Capoeira Regional: uma interpretação da modernização cultural no Brasil (1989). Essa dissertação, com algumas modificações, foi posteriormente publicada em livro com o título O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no Brasil (Rio de Janeiro, Ed. Srint, 1995).

Neste trecho inédito do depoimento, Mestre Ezequiel se posiciona a respeito de alguns dos principais problemas da capoeira no final dos anos oitenta: a formatura apressada de mestres de capoeira, a questão da violência e a utilização de agarrões e projeções nas rodas. Além de seu valor histórico, o depoimento se destaca pela visão crítica do Mestre Ezequiel em relação aos caminhos da capoeira nos tempos atuais.

Embora se trate de um texto datado, que enfatizou temas que estavam sendo abordados em uma pesquisa específica, é oportuno, dada a relevância do Mestre e sua forma incisiva de tratar de assuntos polêmicos. Em um momento em que são discutidas políticas públicas para a capoeira, é oportuno observar que alguns dos dilemas identificados há mais de vinte anos continuam atuais.

Para garantir mais fluidez ao texto, foram suprimidas as perguntas.
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Mestre Eziquiel
Depoimento concedido a Luiz Renato Vieira em 25 de janeiro de 1989

Antigamente, existia o mestre e o contramestre de capoeira, aquele aluno mais aprimorado que ajudava o mestre a dar aula, a ensinar, fazia algumas coisas que o mestre pedia dentro da academia, ensinava o aluno que sabia menos. O contramestre seria o futuro mestre. Normalmente, esse contramestre passava a ser mestre quando o mestre morria, quando o mestre parava de ensinar. Aí ele passaria a ser chamado de mestre, já teria o reconhecimento do pessoal da área da capoeira. Mas, com o tempo, a capoeira foi evoluindo, as coisas foram mudando. O contramestre foi caindo na extinção. Hoje, na conclusão do curso, todo mundo dá a conotação de mestre ao aluno. É uma coisa que eu, por exemplo, não aprendi a aceitar. (...)

Para você ter uma idéia, um aluno formado de Mestre Bimba não tinha autorização para dar aula, para ensinar. Ele dava autorização depois que você se formasse e fizesse a primeira especialização, a segunda. Depois da segunda, ele lhe dava um Lenço Branco. Aí é que você teria autorização para ensinar.

O curso tinha duração de um ano e seis meses, dois anos. Depois que você formava, ficava lá treinando, e quando abria curso de especialização, você se inscrevia (...). Quando se formava, você recebia um lenço azul. Depois da primeira especialização, recebia um lenço vermelho; depois da terceira, um lenço amarelo. Conseqüentemente, o mestre lhe dava um lenço branco, quando você já estava mais adiantado, maduro. Esse lenço era um símbolo que marcava a sua condição. O lenço, não se usava. Você recebia o lenço no dia da formatura e guardava com muito carinho, como tenho o meu guardado até hoje. Aí você já tinha alguns direitos, como jogar iúna. Todo mundo tinha que bater palmas quando você jogava iúna. Você já ganhava uma condição diferente.

Hoje, não. Hoje é diferente. O elemento é mestre de capoeira, tem trinta ou quarenta alunos, faz um trabalho de cordão, começa a fazer os cursos dele, os exames. Quando chega no último cordão, um menino novo que não tem nenhum serviço prestado à capoeira, simplesmente é um aluno, um capoeirista, ele dá aquele lenço branco e faz uma festa dizendo que está entregando um cordão de mestre. O cidadão passa a ser conhecido como mestre. Mas o elemento para ser chamado de mestre, como eu entendo, tem que ter um trabalho sério de capoeira, ele tem que ensinar, tem que ter bons alunos. Ele tem que ter reconhecimento popular pelo seu trabalho, a nível nacional inclusive. Eu acredito que muito poucos mestres de capoeira hoje têm uma conotação a nível nacional. Aquele que não tem e se diz mestre, no fundo deixa muito a desejar.

O elemento entrar na roda, bater, e não saber nada, para mim é falta de conhecimento e de informação da realidade da capoeira. Para muita gente que desconhece os fundamentos da capoeira, é assim. Mas a realidade é outra. Isso é um erro gravíssimo. Para você ser um bom capoeirista, ser conhecido como excelente capoeirista, não precisa entrar na roda e bater em ninguém. Pode muito bem dar um martelo no cidadão e mostrar que não acertou porque não quis, porque você tem informação e educação esportiva. Não precisa dar martelo na cara de ninguém para mostrar que você é um excelente capoeirista. Não acrescenta nada.

Mestre Bimba, no trabalho dele, ensinava alguns golpes ligados. Esses golpes ligados foram mal interpretados por muita gente. Daí, deu origem a esses agarrões que você está vendo hoje nas rodas de capoeira. O mestre ensinava porque muita gente andava dizendo por aí, como diz até hoje, que você pegava o capoeirista numa área grande e ele era o cão; quando apertava ele num cantinho, acabou o homem. Por esse motivo, o mestre procurou ensinar algumas coisas, algumas defesas, alguns golpes ligados para o aluno usar em qualquer momento de dificuldade, saber como se defender, saber como sair. Mas ele ensinou isso mas nunca orientou que a gente devia chegar na roda de capoeira, pegar o elemento e aplicar esses golpes. Era um negócio feito dentro da academia a título de treinamento. Quando houvesse uma necessidade, você se prevalecia do seu conhecimento.

Mestre Bimba preparava para a roda como para o cotidiano, para você se defender da violência. Mas isso foi passando de maneira errada de aluno para aluno e caiu no que caiu, que você está vendo aí. Parece até luta-livre, algumas rodas de capoeira. E a Capoeira Regional é que leva a fama. Mas não é nada disso. Mestre Bimba ensinou com uma finalidade e é utilizado com outra.

A Cintura Desprezada faz parte dos golpes ligados. É uma série de balões que Mestre Bimba introduziu na capoeira para facilitar o capoeirista cair quando é jogado para o alto. Porque às vezes você é jogado para cima em determinada situação e não sabe como cair.

A idéia do Mestre foi adaptar esses balões no sentido de lhe facilitar cair quando é jogado para cima. Por isso, esses balões da capoeira são também chamados movimentos de projeção. E eu desconheço que Mestre Bimba tenha treinado outra modalidade de luta em sua vida a não ser capoeira. Os índios também lutam, dão balão, gravata e tudo, e eu pergunto a você: quem ensinou os índios a lutar? Quem ensinou os índios a agarrar? O trabalho de Mestre Bimba fez parte do conhecimento que ele tinha dentro da capoeira com a inteligência dele. Começou a assimilar uma coisa com outra, juntou as idéias dele e criou a Capoeira Regional.