quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Breves Considerações em Torno da Pesquisa sobre a História da Capoeira


Luiz Renato Vieira

Como uma prática que envolve de diversas formas o indivíduo que a pratica, é natural que a capoeira estimule a interface de múltiplas áreas do conhecimento humano. E isso vem efetivamente ocorrendo, com maior intensidade nas últimas décadas. Se, desde o início do século XIX até meados do século XX a capoeira foi objeto quase que exclusivo da pena de jornalistas e folcloristas, que oscilavam entre a descrição de seu caráter exótico e a abordagem dos perigos que - à época, estando associada à figura social do malandro - representava para a sociedade, verifica-se, desde o princípio dos anos 1980, uma enorme profusão de pesquisas acadêmicas sobre a capoeira. Esse esforço de investigação tem resultado freqüentemente em monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado de excelente nível, despertando cada vez mais nosso interesse por uma arte que por sua plasticidade e musicalidade já nos conquista desde o primeiro contato.


Apresentação do Grupo Beribazu na Embaixada da Colômbia - 2011
(na roda: Prof. Chico e Prof. Mejia)

Na realidade, em 1968 o estudo já clássico de Waldeloir Rego, intitulado Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico, lançou as bases metodológicas de boa parte das análises que se seguiram, principalmente no campo das ciências humanas: sistematizou a discussão sobre as origens africanas ou brasileiras da capoeira, identificou as principais tradições e rituais, os principais portadores de sua memória oral e as principais transformações ocorridas na capoeira enquanto manifestação da cultura popular. É evidente que muitos de seus questionamentos foram revistos, e os temas reexaminados à luz de outros enfoques teóricos e conceituais, mas sua relevância é marcante no curso das pesquisas sobre a matéria. Diversos trabalhos - este, naturalmente, não é o lugar adequado para relacioná-los ou examiná-los um a um - foram se produzindo até que se constituísse um verdadeiro debate, com referências mútuas e aperfeiçoamento das proposições . Nos últimos anos, nos catálogos de teses universitárias em ciências humanas, principalmente nos campos da antropologia, sociologia, história e psicologia social, está cada vez mais presente a preocupação não só em se rever as bases históricas em que se construiu a nossa capoeira, mas também em perceber seu potencial na melhor compreensão do complexo drama social e político brasileiro.



Não seria exagero afirmar que através da capoeira, de suas múltiplas linguagens (rituais, corpóreo-gestuais, musicais e simbólicas), pode-se “ler” a sociedade brasileira, suas características, suas brutais desigualdades e o esforço constante das camadas sociais oprimidas em fazer valer suas legítimas reivindicações de participação na definição dos destinos do país. Essa leitura vem efetivamente sendo feita com sofisticação cada vez maior, desenvolvendo formas elaboradas de análise e lançando mão de elementos teóricos que têm permitido ver com melhor clareza na capoeira o que antes apenas intuíamos.

A primeira tese acadêmica defendida no Brasil e que se tem notícia sobre a capoeira em perspectiva histórico-sociológica foi defendida no Departamento de sociologia da Universidade de Brasília, em 1984, por Julio Cesar de Souza Tavares. Intitula-se A dança da guerra: arquivo-arma e é considerada de fundamental importância por inaugurar um debate e por inserir a questão da análise da capoeira na perspectiva crítica das relações raciais no Brasil. De fato, esse tipo de leitura já não era novidade naquele momento, mas a tese de Julio Tavares, além de apresentar interessantíssimos elementos de análise e de ter muito boa fundamentação teórica, estabelece um marco inicial na discussão acadêmica sobre a capoeira apontando para um caminho que precisaria incorporar – o que de fato veio a acontecer – o componente do poder e das estratégias de resistência construídas pelo povo brasileiro.

Em 1990, na mesma instituição, Luiz Renato Vieira defende tese sobre o desenvolvimento da capoeira durante a Era Vargas, buscando compreender as influências do cenário sócio-político do momento em aspectos rituais, éticos e metodológicos do universo da capoeira, que na época foi profundamente modificado com o surgimento da chamada Capoeira Regional. Este trabalho tem sido bastante discutido por autores que abraçaram o tema posteriormente e abriram novas perspectivas de análise .

Em 1993, Letícia Reis apresenta sua dissertação de mestrado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP: Negros e brancos no jogo da capoeira: a reinvenção da tradição discutindo com os trabalhos anteriores e inovando em muitos pontos, principalmente, em nosso entender, ao concentrar-se na hipótese de que a capoeira Regional (inovação implementada por Mestre Bimba a partir do final dos anos 20 deste século) e a capoeira Angola, versão defendida pelos tradicionalistas e mais comprometida com a ritualística ancestral, consistem em estratégias diferenciadas de inserção do segmento negro no contexto das relações raciais estabelecidas no Brasil.



Ainda em 1993 é defendida, no Departamento de História da Unicamp, a tese A negregada instituição: capoeiras no Rio de Janeiro (1850-1890), aprofundando sobremaneira o estudo sobre a capoeira no Rio de Janeiro no século XIX. Em virtude deste e de outros trabalhos pode-se afirmar seguramente que este é o momento mais bem conhecido da história da capoeira.

Outro trabalho de grande importância na construção do debate sobre a capoeira nas ciências humanas foi a tese de Antônio Liberac Pires, defendida em 1996 no Departamento de História da Unicamp. Intitula-se Capoeira no jogo das cores: criminalidade, cultura e racismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1937) e aprofunda um filão atualmente é bastante trabalhado, isto é, o da investigação histórica sobre a capoeiragem no Rio de Janeiro no final do século passado e início do atual.

Carlos Eugênio Líbano Soares, dando continuidade à sua investigação histórica, conclui o doutoramento em história na Unicamp em 1998 com a apresentação da tese A capoeira escrava no Rio de Janeiro (1808-1850), trabalhando com documentos – inclusive muitos registros policiais - que lançam luz sobre um período (início do século XIX) sobre o qual pouco se conhecia no que se refere à história da capoeira.


Carlos Eugênio Soares e Luiz Renato em evento na UFPR (2010)


Alguns desses trabalhos foram publicados na forma de livros, mas os novos pesquisadores encontram ainda muitas dificuldades para ter acesso a eles. Na realidade, talvez a indústria editorial não tenha percebido a importância da questão e a qualidade da discussão acadêmica que em torno dela se faz. Além disso, é fundamental que esses e outros trabalhos estejam ao alcance do grande público praticante e interessado na capoeira. É verdade que advento da Internet, com a facilidade da circulação de arquivos digitais, mudou consideravelmente essa realidade.

Atualmente há, por parte daqueles envolvidos com a capoeira, um forte interesse em questões históricas e referentes a aspectos sociais o que pode demonstrar o empenho em desenvolver uma prática consciente e, cada vez mais, voltada para o fortalecimento da cidadania.

Um texto brevíssimo como este não poderia ter outra proposta senão despertar o interesse sobre a história da capoeira e informar ao leitor que o tema vem sendo cada vez mais investigado e que sobre ele já se constitui um debate de grande profundidade. Deixamos de listar aqui contribuições importantíssimas como a dos folcloristas, cronistas – entre os quais temos o grande Machado de Assis - que nos legaram interessantíssimos relatos sobre a antiga capoeira, geralmente vista, no século passado, como “chaga social”.

Também não pudemos examinar as valiosas contribuições daqueles que, foram os primeiros a propor a sistematização da capoeira como “luta nacional”, como Annibal Burlamaqui e Inezil Penna Marinho. Igualmente não pudemos nos deter nos interessantes escritos de Mestre Pastinha e em depoimentos publicados, como os do Mestre Noronha. Há também, provocantes análises sobre esses capoeiras como as que fez Mestre Decânio que não pudemos aqui expor. Artigos resultantes de pesquisas como os produzidos por Marcos Bretas e Thomas Holloway também não foram contemplados. Finalmente, em um estudo mais aprofundado, teria que se registrar a colaboração que vem sendo prestada por pesquisadores como Mestre Itapoan, em seus estudos sobre Mestre Bimba, Jair Moura e o notável Frederico Abreu, o baiano organizador do maior acervo existente sobre a capoeira.

Registre-se, por fim, que o livro de Matthias Assunção (Capoeira: the History of an Afro-Brazilian Martial Art), abordado em outra postagem neste blog, é hoje referência obrigatória nos estudos sobre história da capoeira, pela qualidade das informações que traz e pela amplitude do universo bibliográfico percorrido.



Ao despertar, portanto, o leitor para a complexidade do tema e de nossas limitações frente a sua importância e grandeza, acreditamos cumprir o papel de gerar uma saudável provocação e inquietude.