sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Capoeira, tradições e identidades


Talvez o tema da origem da capoeira seja o que mais suscita dúvidas e curiosidades nas mentes dos praticantes e dos pesquisadores da nossa arte-luta. Afinal, é natural que as explicações sobre os fatos, sejam eles históricos, sociais ou naturais, partam de sua origem, de seu surgimento. Quando se fala de cultura, de tradições e de identidades sociais, temos um impulso, muitas vezes inconsciente, de explicar as coisas pela sua origem: é como se a maneira como surgiu um fato, uma tradição ou um hábito servisse como uma espécie de certidão de nascimento, onde estaria escrita a finalidade e o papel que essa instituição cultural desempenhará, para sempre, na vida social.

E não há nada de errado nisso. Todos os povos o fazem, e os cientistas sociais, de certa forma, aprenderam observando essas tradições ancestrais. Todas as sociedades ágrafas (aquelas que não têm escrita), por exemplo, dão grande importância às suas cosmogonias. Cosmogonia é a forma como a sociedade explica, por meio de um mito ou de um conjunto de mitos seu aparecimento. Assim, explicando como surgiu, constrói sua identidade e atribui sentido à sua existência. Mas o que tudo isso tem a ver com a capoeira?

Ora, por que nos prendemos à eterna polêmica sobre a origem da capoeira? Por que atribuímos tanta importância à discussão quanto ao seu surgimento ter ocorrido no Brasil ou nas longínquas terras africanas? Ou por que aceitamos com tanta facilidade explicações convenientes ao que pensamos ter sido um passado glorioso dos pioneiros de nossa luta, escravos fugitivos, embrenhados nas matas e combatendo corajosamente homens fortemente armados?

Talvez a persistência da dúvida seja mais significativa do que suas eventuais respostas. O fato de perseguirmos incessantemente nossas supostas origens – principalmente a partir da falsa questão da brasilidade ou africanidade da capoeiragem – dá a medida da necessidade de definirmos, ou de construirmos nossa identidade.

Os historiadores e pesquisadores em geral têm avançado muito no tema das origens da capoeira, é verdade. Por outro lado, a literatura especializada – ainda pouco conhecida no Brasil, infelizmente – já registra modalidades de modalidades de lutas (muitas das quais também praticadas ao som de instrumentos musicais) em diversos países africanos. Não vamos detalhar esse aspecto, no momento. Vamos, por outro lado, despertar o leitor para a reflexão sobre o fato de que, discutir a origem da capoeira envolve pensar a partir de que momento consideramos essa instituição musical, ritual, corporal e lúdica como capoeira.

Sendo uma manifestação cultural, surgiu de práticas preexistentes, uma vez que ninguém afirmaria que a capoeira surgiu pronta, de um projeto de alguns iluminados. Sendo assim, se não há acordo sobre o que define essencialmente o que seria a capoeira hoje (sua característica de luta? Sua ritualística? Seu caráter de folguedo?), como estabelecer o marco zero de sua história? E, se ela se origina de tradições ancestrais e anteriores, certamente vindas predominantemente da África, onde se situaria esse marco zero? Em que momento de sua trajetória histórica? Já no Brasil ou ainda naquele extenso continente onde apareceram os primeiros traços de humanidade em nosso planeta?

Há, certamente, mais dúvidas do que respostas quanto a esse aspecto da história da nossa arte-luta. Precisamos, então, aprender com essa necessidade de termos nossos mitos fundadores, e entender que há algo de universal nessa procura. Assim como há muito de universal no sentimento de preservação daquilo que reconhecemos como integrante de nossa identidade.

Para ilustrar esse breve comentário, e também para concluí-lo, transcrevo a afirmação de um árbitro de luta africana, publicada em um jornal francês (Le Monde, artigo intitulado “A luta tradicional africana realiza seus primeiros campeonatos”, 27/4/1995), que, adaptada, poderia ser perfeitamente proferida por qualquer capoeirista brasileiro preocupado com a perda da “essência” da nossa luta: “Nós importamos esportes da Europa como o futebol e negligenciamos aquele que é o esporte autenticamente africano”. As lutas africanas não são peças de museu. Existem, fazem parte de sistemas culturais complexos e talvez ainda guardem muitos segredos sobre as origens da nossa capoeiragem.

Entretanto, talvez o que essas lutas tenham a nos mostrar de mais importante não sejam os traços originários que tanto procuramos. Mais do que procurar a certidão de nascimento da nossa capoeira na África, parece-me mais importante perceber que a dinâmica cultural da busca da identidade, e do conflito simbólico entre culturas locais e formas globalizadas é um fenômeno universal.

Também em alguns países da África discute-se, atualmente, se a organização desportiva de modalidades de lutas tradicionais, ritualizadas e de forte conteúdo cultural não as levará à total descaracterização. Há, sem dúvida, algo de universal nas lutas de todos os povos. A luta pelo direito de existir como cultura autônoma, viva e dinâmica.

Luiz Renato Vieira