Diálogos Filosóficos:
Educação, aprendizado e crescimento na capoeira
Mestre Squisito e Professor Filósofo
Prefácio - Mestre Luiz Renato
Ao longo de quase quarenta anos de prática e trabalho
com a capoeira, tenho tido a sorte e a honra de ter convivido com pessoas muito
especiais, que valorizam o saber popular e que conseguem olhar o mundo de forma
diferente. Gente que percebe a necessidade de transformar estruturas sedimentadas
e arcaicas, da cultura à política, que sustentam um mundo de desigualdades
sociais e que pretendem minar a pluralidade e a riqueza dos nossos modos de
viver.
Mestre Skysito é uma dessas mentes inquietas e geniais
que, felizmente, existem no mundo da capoeiragem. Com a vantagem adicional de,
sendo capoeirista da raiz – com o pé sujo no chão da roda –, também possuir
formação acadêmica e profissional exemplares.
Enquanto muitos fazem um grande esforço para levar uma
vida dual, dividindo-se entre a capoeira e seus afazeres profissionais, Mestre
Skysito nunca se contentou com isso. Seria muito convencional para ele... Sua
trajetória revela um permanente esforço no sentido de integrar a compreensão dos meandros
das mandingas da capoeiragem com o mundo dos sistemas, fluxogramas, modelagens,
governanças e gestões de qualidade.
Ele, como ninguém, sabe que a trajetória do mundo
civilizado (pelo menos da maior parte do Ocidente) é, em parte, uma tentativa de
ver ordem sistêmica e racional em um universo que se move de maneira muito mais
complexa e multifacetada. Nunca o ouvi dizer isso, mas tenho certeza de que a
capoeira foi uma grande fonte de experiências e saberes para seu exercício
profissional. Afinal, em sua riqueza, a capoeira possui uma lógica de
funcionamento complexa e intrincada e possui dinâmica de difícil apreensão.
Claro que me refiro, aqui, ao cenário mais amplo da
capoeiragem, que transcende em muito a roda e o jogo. Falo do cenário em que transitam
mestres, atletas, artistas, músicos e muitos outros que se identificam com a arte
da capoeira em uma ou mais de suas infinitas facetas. A essa pluralidade de
agentes, misturam-se os aspectos rituais, históricos e as inúmeras explicações
que vêm sendo formuladas sobre o funcionamento e os processos de mudança
existentes nesse universo. A tudo isso, temos chamado de teoria da capoeira, o
resultado cumulativo de todo um esforço de explicação acerca da dinâmica desse
universo cultural, envolvendo relações complexas e agentes diversos e
hierarquizados, configurando o que nós, sociólogos, costumamos chamar de campo de poder, inspirados no mestre
francês Pierre Bourdieu.
Muito se tem escrito sobre capoeira e suas formas de
organização. Inúmeras dissertações de mestrado e teses de doutorado têm
explorado a temática. Nos últimos dez anos, multiplicaram-se os estudos sobre o
papel do Estado nos processos de organização e de valorização cultural da nossa
arte-luta. O livro que neste momento tenho a honra de prefaciar, entretanto, tem
natureza diversa.
Esses Diálogos
Filosóficos têm a virtude de trazer para o debate, de maneira informal, um
rico conjunto de temáticas que se relacionam com o universo social, cultural e
político da capoeiragem na atualidade. Com a leveza de uma conversa, Mestre
Skysito transita por temas como a necessidade de qualificação profissional de
professores e mestres para lidar com as demandas da atualidade; a dinâmica da
internacionalização da cultura; o processo de escolarização da capoeira e todas
as suas contradições; a questão das tradições e dos antigos mestres da nossa
arte; e muitas outras questões importantes e atuais.
Diálogos Filosóficos – Educação, aprendizado e
crescimento na capoeira, elaborado pelo Mestre Skysito em co-autoria com Dolf
Van der Schoot, conhecido como Professor Filósofo, é um livro de muitos
méritos. Eu até diria mais do que isso. É um livro necessário. Estamos em um
momento de inflexão na história da capoeira. Ao mesmo tempo em que o Estado
volta seus olhos para a nossa luta e dá partida em uma série de processos (aos
trancos e barrancos, é verdade!) de reconhecimento e valorização desse
patrimônio, a comunidade da capoeira é chamada a refletir sobre suas formas de
organização, suas práticas e seus valores. Talvez seja exatamente esse o ponto
em que se encontra a maior relevância desses Diálogos Filosóficos: a contribuição que traz para a necessária e
urgente autocrítica da comunidade de mestres, professores, pesquisadores e
praticantes da capoeira.
De uma forma sincera, objetiva e desmistificadora,
Mestre Skysito traz à reflexão temas como uma suposta essência libertária da
capoeira. Como cientista social, ele sabe que fenômenos sociais possuem
conteúdo e significado construídos pelas práticas de que resultam, e não são
resultado de uma suposta essência a-histórica. Assim, explica Mestre Skysito, a
capoeira é e sempre será o que fazemos dela. Ela ganha significados sociais e
culturais de acordo com nossas práticas e com as relações de poder em que se
envolve.
Esse é o tom do livro. Mesmo sendo, há muito tempo,
conhecedor do talento e da sabedoria do meu amigo Mestre Skysito, fiquei,
realmente, impressionado com a originalidade da proposta.
Tenho certeza de que temos, aqui, um marco! Um momento
em que o capoeirista percebe que, para além da condição de resistência à
opressão, há que se refletir sobre a maneira como devem ser trilhados os
caminhos que se abrem.
Certa vez, ouvi de um grande mestre baiano, um
baluarte da Capoeira Angola, Mestre Curió, a afirmação de que a mandinga não
tem hora nem lugar: “Você tem que ter mandinga até para comer um bolo de
carne”. Mestre Skysito, agora, nos mostra que temos que ter mandinga para
repensar nossa mandinga. E, para isso, nada melhor do que um bom diálogo!
Parabéns, Mestre Skysito e Professor Filósofo. E
obrigado por nos oferecer uma leitura tão instigante sobre nós mesmos e sobre o
que fazemos.
Luiz Renato Vieira
Mestre de Capoeira – Sociólogo, Mestre e Doutor
em Sociologia, com Pós-Doutorado em História Comparada. Professor da disciplina Prática Desportiva – Capoeira na Universidade
de Brasília.
Nenhum comentário:
Postar um comentário