Marcão
“...eu me lembro
eu era menino e já me amarrava
no som que Geraldo Pereira cantava
e a Lapa fervia com seus cabarés...”
Sincopado Ensaboado – Trio Calafrio
“Foi na Lapa, foi na Lapa
que Madame Satã acabava com a briga
no soco e no tapa
foi na Lapa...”
Lapa – Mestre Toni Vargas
Rio de Janeiro, maio de 1955. Duas importantes figuras de nossa cultura encontraram-se num bar da Lapa, provavelmente o Capela. Geraldo Pereira, um dos compositores mais criativos da MPB, e João Francisco dos Santos, também conhecido como Madame Satã. Os dois se desentenderam, brigaram e Geraldo Pereira faleceu. Não se sabe até hoje se foi conseqüência da briga ou não. Vários mitos existem em torno do fatídico encontro.
Madame Satã (25/02/1900 – 11/04/1976) era conhecido por demonstrar sua valentia nas ruas e bares da Lapa, defendendo prostitutas (já que trabalhava como leão-de-chácara), enfrentando a polícia e principalmente por ser exímio capoeirista. Além disso, era transformista e participava dos concursos nos bailes de carnaval.
A historiadora Adriana Albert Dias, em seu livro Mandinga, Manha & Malícia – uma história sobre os capoeiras na capital da Bahia (1910 – 1925), narra uma passagem curiosa da vida de Madame Satã:
“O capoeira Madame Satã, que também foi moleque de rua e muito apanhou da polícia, relembrou nas suas memórias o dia em que Edgar “chegou na Lapa menininho” à sua procura, querendo aprender capoeira. Na primeira conversa entre os dois, Edgar foi logo dizendo a que veio:
- O senhor é que é Madame Satã?
- O que é que você quer garoto?
- Quero aprender capoeira.
- E o que é que eu tenho com isso?
- Me chamo Edgar e queria que o senhor me ensinasse.
- Vai procurar sua turma, menino.
- Me ensina seu Madame Satã.
Como Madame Satã percebeu que o menino ia “encarnar mesmo”, ia ficar insistindo até “encher o saco”, ele resolveu dar-lhe “um sustinho” e jogou a perna no pequeno. O Edgar, Satã narrou, “subiu um metro do chão e bosteou. Aí se levantou” e perguntou: “Agora o senhor me ensina?”. Com tanta coragem o menino conseguiu convencê-lo. Na mesma hora Satã levou Edgar para a Praça Onze, onde seus camaradas “eram muito entendidos em capoeira”. E o deixou lá. Passados uns quatro, cinco dias, vieram lhe dizer que tinha um menino das suas relações envolvido numa briga. Quando Satã viu era o valente aprendiz de capoeira “encarando dois soldados na perna”. Edgar acabou matando quatro soldados”. (pg. 128)
O trecho revela um pouco da atmosfera e das relações vividas por Madame Satã. Detido várias vezes em Ilha Grande (presídio que serviu também para presos políticos durante a ditadura militar), acabou tornando-se um ícone da cultura marginal.
Geraldo Pereira (23/02/1918 – 05/05/1955) tem um vasto repertório musical. Compositor de uma criatividade singular, já foi gravado, em diferentes épocas, por grandes referências da MPB. Cyro Monteiro, Gilberto Gil, Jards Macalé, João Nogueira, João Gilberto, Paulinho da Viola, Tom Jobin, Zeca Pagodinho, Luis Melodia, Cartola, Zizi Possi, Dolores Duran, Chico Buarque, Elza Soares, Fernanda Abreu e Elis Regina formam uma pequena lista de artistas que cantaram suas músicas. Aliás, Paulinho da Viola defende a tese de que a matriz da bossa nova está no conhecido samba sincopado de Geraldo Pereira.
A briga ocorrida entre esses dois personagens não gerou apenas especulações sobre um fim dramático. A morte de Geraldo Pereira pode ter sido causada diretamente pela briga – a versão mais conhecida da história conta que Madame Satã desferiu um soco em Geraldo que, embriagado, perdeu o equilíbrio e caiu batendo a cabeça no meio-fio – ou não. Outras versões contam que Geraldo não morreu em decorrência da briga, mas sim devido a problemas no fígado, ou ainda em conseqüência de um câncer.
Para além da causa real e da tragédia, o fato revela o que para alguns é óbvio, mas para outros nem tanto: samba e capoeira são dois irmãos inseparáveis. Andam juntos nas praças, ruas e escadarias, no cais do porto (vejam este vídeo especial com Mestre Aniceto do Império Serrano: http://www.youtube.com/watch?v=krh4wel6Cwc) e nos terreiros. Dividem a mesma navalha, o terno branco, o tamanco e o lenço de seda no pescoço. São a matéria prima da nobreza malandra. Para se ter uma idéia de como nem mesmo o tempo pode separá-los, a Lapa de hoje, revitalizada e “asséptica” em relação àquela de outrora, reduto dos principais conjuntos de samba do Rio de Janeiro, foi ainda no século XIX, palco de enfrentamentos homéricos entre maltas de capoeiragem e também entre capoeiras e as forças da ordem.
Em um caso importante, mas pouco reconhecido de nossa cultura, muito se diz sobre o quanto devemos às pessoas que estão fora dos circuitos oficiais, além dos gabinetes e salões da realeza, onde supostamente se tomam as grandes decisões desse país. Geraldo Pereira não é exatamente o caso, já que foi e é reverenciado como grande compositor, mas aos vários Manducas da Praia e Madames Satãs existentes por aí, muitas vezes engolidos pelo anonimato imposto pelas grandes cidades. Cada esquina e cada calçada guardam muitas daquelas histórias, e o samba e a capoeira podem nos ajudar a conhecê-las.
Marco Castilho Felício (Marcão)
3 comentários:
Bem interessante Marcão, madame satã definitivamenet é um mito ainda muito misterioso, estórias fantásticas sempre rondaram em torno deste nome.
Concordo. Existem outros importantes personagens cujas histórias devem ser conhecidas, estudadas juntamente com seus contextos... Tenho a convicção de que pessoas como Madame Satã e Geraldo Pereira dizem muito sobre o Brasil, nossas relações e a formação da nossa sociedade.
Muito bom artigo, Marcão. É juntando os pedaços que vamos compondo esse complexo mosaico que é a história das tradições da cultura popular. Se examinarmos a historiografia da capoeira desde meados dos anos oitenta do século passado(o primeiro estudo acadêmico resultante de curso de pós-graduação stricto sensu em ciências humanas é de 1986), ela nos mostra exatamente isso. E algo que precisa ganhar corpo é a análise dessa ligação das tradições da capoeiragem com outras manifestações populares como o samba. Muito boa sua reflexão. Forte abraço e siga em frente.
Luiz Renato
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