A CAPOEIRA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS: OBSERVAÇÕES PRELIMINARES E PROPOSTAS PARA DISCUSSÃO
O texto que se segue foi apresentado em seminário do Grupo de Estudos da Capoeira (SENECA-GECA), em Campinas, e publicado em 2003 na revista Praticando Capoeira. Republico no blog para que possamos fazer uma reflexão em relação à realidade que se construiu nos últimos anos, com iniciativas do Ministério da Cultura como o Registro da Roda de Capoeira e do Ofício dos Mestres como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, o Projeto Capoeira Viva e o Programa Pró-Capoeira.
Luiz Renato
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Constituição da República Federativa do Brasil, 1988
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1.º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.”
Embora a Constituição Federal estabeleça a obrigatoriedade da atuação do Estado na garantia do acesso de todos os brasileiros à cultura e também a proteção das manifestações culturais nacionais, todos sabemos que na prática isso não tem ocorrido a contento. As verbas para o setor cultural têm sido sempre muito escassas e, quando há algum apoio, em geral ele se destina à cultura chamada “erudita” ou às grandes produções cinematográficas. Nada contra o apoio a essas iniciativas, que são importantes, mas é preciso observar que falta uma boa política de incentivo às manifestações culturais e artísticas de origem popular.
O Estado brasileiro vive uma situação de escassez de recursos, cujos motivos não vamos aqui examinar.
Estabelecem-se, então, prioridades para investimentos nas ações do governo de acordo com o que, num determinado momento político, se considera mais importante. Acontece que nem sempre essa escala de prioridades coincide com os anseios da sociedade. É aí que entram os segmentos organizados da sociedade, fazendo valer seus direitos e reivindicando políticas públicas que atendam às suas necessidades. Essa ação consiste em não apenas em exigir a adoção de políticas adequadas a um determinado fim mas também em participar e interferir ativamente na sua execução.
Estabelecem-se, então, prioridades para investimentos nas ações do governo de acordo com o que, num determinado momento político, se considera mais importante. Acontece que nem sempre essa escala de prioridades coincide com os anseios da sociedade. É aí que entram os segmentos organizados da sociedade, fazendo valer seus direitos e reivindicando políticas públicas que atendam às suas necessidades. Essa ação consiste em não apenas em exigir a adoção de políticas adequadas a um determinado fim mas também em participar e interferir ativamente na sua execução.
Vemos, então, que a participação da sociedade civil organizada é fundamental nesse processo. Alguns casos de políticas públicas muito bem sucedidas se devem à colaboração do Estado com o chamado terceiro setor, composto pelas organizações não-governamentais (ONG). Veja-se, por exemplo, o caso da política brasileira de combate à AIDS. O Brasil não teria se tornado uma referência internacional nesse campo se não fosse a atuação das ONG exigindo que o Governo Federal cumprisse seu dever constitucional de garantir a todos o direito ao atendimento especializado e à medicação adequada ao tratamento da enfermidade. Criou-se, assim, uma eficiente forma de colaboração entre Estado e diversas associações compondo uma ampla rede de atendimento, envolvendo orientação, tratamento e distribuição gratuita de remédios.
No caso da capoeira, há muitas possibilidades de iniciativas como essa terem sucesso. Já demos um passo muito importante: nos últimos quinze anos: os grupos e associações de capoeira têm rejeitado o rótulo de clubes esportivos e, cada vez mais, estão se definindo, também, como entidades culturais. Isso é fundamental, pois reforça a identidade da capoeira como manifestação cultural, recusando o caminho reducionista da desportivização.
Os grupos mais organizados já atuam reivindicando e obtendo apoio das três esferas de Governo - federal, municipal e estadual - para suas iniciativas (viagens no país e para o exterior, publicação de livros e CD´s, organização de eventos etc). Essas ações, no entanto, ainda têm um caráter muito isolado, e geralmente dependem de contatos pessoais de dirigentes de grupos de capoeira com funcionários do Estado. Não têm sido resultado de uma mudança na perspectiva do Poder Público quanto à capoeira, reconhecendo-a como importante elemento da cultura brasileira a ser incentivado e desenvolvido como determina a Constituição Federal nos artigos 215 e 217.
Cada dirigente de grupo de capoeira, individualmente, busca estabelecer seus contatos e obter seus apoios, e guarda a sete chaves as informações que consegue. Assim, reforça-se uma estrutura obscura e clientelista, em que algumas associações de capoeira recebem apoio dos órgãos públicos como se fossem favores pessoais, e não como o cumprimento de uma obrigação do Estado. Assim, essas iniciativas não se perenizam, uma vez geralmente resultam de uma decisão individual do dirigente do órgão, e não de uma política pública institucionalizada.
Esse tipo de conduta, além de não fortalecer a comunidade da capoeira como grupo legítimo de pressão junto aos órgãos governamentais, não estimula a consciência e desagrega os capoeiristas enquanto coletivo. Trata-se de um jogo de soma negativa, isto é, uma situação em que, quando todos lutam por seus interesses de maneira desarticulada, todos saem perdendo. Esse é o principal problema que identificamos nesse setor, e esse nó precisa ser desatado.
Uma das alternativas que vislumbramos, tendo como referência alguns casos de sucesso como o que citamos acima, é a formação de organizações não-governamentais para fazer um amplo diagnóstico, monitorar e incentivar a atuação do Estado nesse campo. Essas ONGs (algo como Institutos de Estudo e Acompanhamento de Políticas Públicas Relacionadas à Capoeira) precisariam ser verdadeiramente independentes e representativas: é fundamental que sejam desvinculadas de grupos, confederações e federações existentes (embora devam contar com a participação de seus representantes) e que sejam dirigidas por órgãos colegiados, como conselhos, para evitar o personalismo em sua condução. Deveriam, também, adotar como princípios a transparência e a publicidade, evitando que grupos de capoeira específicos sejam privilegiados, comprometendo a sua respeitabilidade junto a toda a comunidade capoeirística.
Diversas ações e projetos poderiam ser desenvolvidos, como, por exemplo: a) levantamento dos trabalhos atualmente desenvolvidos em universidades públicas e escolas estaduais e municipais; b) organização de um banco de projetos relacionados à capoeira na perspectiva da educação e da cultura, de livre acesso à comunidade; c) divulgação regular de boletins informativos institucionais, sem caráter autoral, em papel e pela Internet, sobre suas ações e seu acervo; d) organização de cursos de elaboração, monitoramento de projetos; e) orientação quanto às formas de captação de recursos junto aos órgãos públicos e muitas outras iniciativas.
O que se sugere aqui, em suma, não é compensar a falta da atuação do Estado no apoio à capoeira por uma iniciativa de alguns voluntários. Ao contrário, trata-se de estimular a organização da comunidade da capoeira para que, como acontece com as chamadas “minorias”, reivindique de forma eficaz junto aos órgãos públicos o cumprimento do dever de apoiar a preservação e o desenvolvimento desse importante segmento da cultura brasileira.
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VIEIRA, Luiz Renato. A capoeira e as políticas públicas: observações preliminares e propostas para discussão. Praticando Capoeira, n. 19, jan. 2003.
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VIEIRA, Luiz Renato. A capoeira e as políticas públicas: observações preliminares e propostas para discussão. Praticando Capoeira, n. 19, jan. 2003.
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