ALUNOS-MESTRES-DOUTORES DE CAPOEIRA
Mestre Cobra Mansa
Fui convidado para ir a uma defesa de
dissertação de mestrado em Educação na UFBA. Fiquei curioso diante de tal
convite, pois pela primeira vez iria participar de uma defesa sobre capoeira em
uma universidade. Fiquei ainda mais curioso e, também, feliz quando percebi que
quase todos na banca eram amigos da capoeiragem, e alguns, inclusive, eram meus
alunos de capoeira.
O início do ritual lembrou-me um
pouco uma roda de capoeira, pois a cerimônia em si, mais parecia um batizado ou
um exame para mestre de capoeira, em que cada mestre deveria jogar uma vez
com a candidata. O primeiro fez um jogo legal, tentando explorar de todas
as formas as aberturas que encontrava e mostrar seu conhecimento – não para a candidata
em si, mas mais para o público que estava presente. O mestre da Roda e
orientador da candidata ficou observando e mediando o
jogo durante o desenrolar da roda, mas não poderia interferir muito
no jogo da candidata nem dos mestres, pois tudo que deveria fazer ou não fazer
pela aluna já tinha sido feito.
O segundo mestre doutor
que aparentava ser um pouco mais novo começou fazendo um jogo bonito,
valorizando tudo que a candidata tinha aprendido e preparando-a para um jogo
duro, tentando de todas as formas mostrar suas habilidades de mestre, e
deixando bem claro para todos que o seu jogo seria muito mais cobrado, pois ele
acreditava que para ser mestre o candidato ou a candidata deve ter certas
qualidades e habilidades.
No meio do jogo ele chamou a candidata para o
pé do berimbau, cantou um corrido e partiu para o jogo de dentro, explorando
tudo o que a candidata sabia e, até o que não sabia, mas que sem
querer escreveu. Depois, partiu pra cima com ataques duros e sem chance da
pobre menina sequer respirar. Em seguida, abriu um pouco o jogo para que a
candidata se soltasse. A menina, pensando que já estava no final do jogo,
tentou mostrar suas habilidades. Foi tudo o que ele queria. Veio logo em
seguida com uma rasteira e uma cabeçada fatal jogando a mesma no chão e deixando
algumas pessoas do público um pouco irritadas, pois acreditávamos que não precisava
de tantas cobranças considerando que a candidata era, apenas, uma iniciante no
jogo de mestre ou mestrado.
Ao final, como um
bom mestre e capoeirista, ele deu a mão e saiu do jogo educadamente, dando
lugar à mestra a qual a candidata tinha um carinho especial, tendo, inclusive, chegado
a treinar com ela. Mas a surpresa veio mesmo no meio do jogo, quando em um
movimento malicioso, usando os contra-ataques que a mesma havia ensinado como
fazer – mas não explicou como sair – contra-atacou sem piedade. Fiquei a
refletir: a mestra deixou para dar o ensinamento no momento da roda. Já dizia Mestre
Pastinha: "O mestre reserva segredos, mas não nega explicação".
No final do jogo, a
candidata, para mostrar que sabia um pouco além daquilo que havia jogado, falou
de sua experiência e, humildemente, mostrou que ainda tinha muito a aprender, e
que gostaria de, um dia, também ser Mestra/Doutora, o que deixou os outros mestres
e a plateia, em geral, bem mais feliz...
Fiquei no meu
canto, como mestre, observando tudo. Por um instante tive um Deja Vu. Na década de 1930 os alunos
universitários do Mestre Bimba influenciaram a capoeira introduzindo elementos
acadêmicos como o ritual de formatura e de batizado, o paraninfo e até nomes de
movimentos como a meia lua de compasso, mudando a forma de ver e pensar da
capoeira. Interessante observar que quase todos os alunos de Mestre Bimba eram
doutores, no entanto, na capoeira não passavam de meros iniciantes de capoeira.
Fiquei sem saber se
estava em uma universidade ou em uma roda de capoeira. Como em uma roda de
capoeira, os doutores presentes usavam termos exclusivos da capoeira e dos
capoeiristas e eu me surpreendia a cada diálogo. Os comentários sobre a dissertação
eram falados em forma de movimentos de capoeira. Um dos doutores da banca usou
uma frase: "não entendi a sua chamada". Outro doutor falou:
"estava esperando um jogo mais duro". "Você fez uma chamada
e eu fui e fiquei esperando como você ia sair". Pensei comigo: acredito
que os “capoeiristas doutores” ou “doutores capoeiristas” estão mudando a forma
de pensar da universidade. Comecei a acreditar que o capoeirista, não importa
onde esteja, vai levar consigo, em seu interior mais íntimo, o seu jeito de ser
e pensar na roda da vida. A roda da capoeira faz parte da roda da vida.
Saí de lá feliz por
ter participado de uma defesa de mestrado em capoeira. Considerando que
a mestranda, agora mestra, sonha em ser, também, mestra de capoeira, enquanto os
doutores que já possuem mestrado são, ainda, alunos de capoeira. Diante
disso, lembrei-me da frase tão célebre na capoeira: "Sou discípulo que
aprendo, sou mestre que dou lição", ou melhor, "Sou discípulo que
aprendo que em doutor vou dar lição". Não estudei pra ser soldado nem
também pra ser doutor aprendi a capoeira pra bater no inspetor.
2 comentários:
Muito interessante este relato de Mestre Cobra Mansa. Me faz refletir como a invencao, apropriacao e ressignificacao de termos, conceitos e categorias sao feitos tanto pelo mundo da capoeira quanto pela propria academia.
otimo isso é capoeira, todo capoeira tem que ter fundamento ...
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