Um dos objetivos do blog do GEHC é colocar em debate a história da capoeiragem local. Dessa forma, nas próximas postagens vamos incluir uma série de textos sobre a formação da capoeira de Brasília, com breves artigos de análise e algumas entrevistas com mestres e capoeiristas do DF. Nessa postagem, apresentamos um artigo do historiador e capoeirista Daniel Mafra, que concluiu seu curso na Universidade de Brasília com uma interessante pesquisa sobre a capoeira de Brasília. O artigo aborda um momento em que se inicia o processo de institucionalização e valorização social da capoeira. Dessa forma, mestres e professores se esforçavam para superar os estigmas que historicamente marcavam a luta brasileira.
A foto que ilustra o texto foi gentilemente cedida pelo projeto História da Capoeira de Brasília - HCB, sob a responsabilidade do professor Rubens Cavalcante Junior (Julião) e de Gabriel Cardoso (Tonico D'angola).
Em Busca das Raízes da Capoeira Candanga
Daniel Mafra - Capoeirista e historiador, formado pela Universidade de Brasília
Muito já se debateu sobre a prática da capoeira no Rio de Janeiro do século XIX, e são abundantes os registros na imprensa e na literatura, para o desgosto da polícia da época.
Em Recife, a capoeira antiga deu lugar à dança do frevo na virada dos séculos XIX-XX, ilustrando de maneira clara a que ponto a repressão chegou em Pernambuco. Esse “causo” está no livro Corpo de Mandinga, de Muniz Sodré.
Há registros da prática da capoeira nas principais cidades do Brasil até o século XIX, mas somente em Salvador há uma continuidade entre a forma antiga e a capoeira atualmente praticada.
A capoeira baiana divulgada em vários estados brasileiros em meados do século XX é um movimento que emerge do legado das culturas africanas no Recôncavo, principalmente povos bantos e iorubás. Paulo Coelho Araújo, em sua dissertação A capoeira: A transformação de uma atividade guerreira numa atividade lúdica, afirma que a ritualização da capoeira está ligada ao candomblé e que era prática corriqueira a execução de movimentos antes dos pontos religiosos. É claro que os instrumentos também estavam ali e eram usados em ambos os momentos.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo, apesar das muitas referências simbólicas à antiga capoeira, os principais grupos atuais foram fundados por mestres baianos a partir da década de 1960.
Nesse processo, a capoeira chega em Brasília, trazida por um baiano conhecido como Mestre Arraia, que foi aluno de Mestre Bimba em Salvador e é o pioneiro da capoeira na cidade tendo se “apresentado” como capoeirista em 1963, mas permanecendo apenas dois anos na capital federal. A partir de 1965, o então aluno Tabosa ficou em seu lugar.
Brasília era uma cidade muito nova e promissora e havia um intenso desembarque de pessoas, entre elas capoeiristas. É nessa época que chega o mestre Onça Tigre, também de Salvador e aluno de mestre Bimba, e estabelece um trabalho em Taguatinga. Mestre Zulu havia chegado em 1957 e teve contato com a capoeira através de um carioca chamado Sérgio Maluco, quando se tornou autodidata até 1970 e treinou com mestre Tabosa até começar a ensinar em 1972, passando a desenvolver uma nova vertente de capoeira denominada por ele mesmo de Arte-Luta, que não era nem Angola e nem Regional. Além disso, buscou a institucionalização da capoeira, destacando o nome da cidade na organização de eventos e campeonatos.
A capoeira havia sido reconhecida como esporte de luta em janeiro de 1973, por resolução do Conselho Nacional do Desporto e foi inserida na Confederação Brasileira de Pugilismo. Até 1979 a organização da capoeira em Brasília se constituía de associações independentes.
Foi a partir daí que os dirigentes das principais entidades da luta se uniram pela criação da Federação Brasiliense de Capoeira. Os Mestres Zulu, Tabosa, Barto, Tranqueira, Adilson, Waldemar Santana, Russo, Pombo de Ouro, Risomar, Monera, Risadinha, Chibata e Ruy, que eram os titulares das principais associações da cidade, estavam sempre promovendo intercâmbios entre suas academias da busca do aperfeiçoamento técnico e organizacional da luta em Brasília. Para isso contavam com o apoio do deputado Caio Pompeu (Arena/SP), que chegou a presidir uma reunião que se propunha a debater a criação de uma federação esportiva fundada sob valores democráticos. Um interessante anacronismo entre o partido de direita em pleno regime militar e uma associação esportiva democrática.
O Jornal de Brasília de 29/09/1979 ostentava a seguinte matéria: Capoeiristas do DF querem padronização. O que ilustra a tendência do Distrito Federal na época. A partir da metade da década de 1970, principalmente a partir da realização da primeira Grande Roda de Capoeira, um dos primeiros eventos nacionais de capoeira, em 1976, mestre Zulu parece se destacar na comunidade capoeirística de Brasília como uma espécie de porta-voz, buscando a institucionalização da capoeira enquanto manifestação esportiva da cultura brasileira.
Mestre Zulu de acordo com entrevista concedida ao Jornal de Brasília em 13/01/1980, era contrário às rodas de rua: “Começavam a aparecer em Brasília os primeiros vestígios dessa forma de praticar a capoeira que tanto têm denegrido a capoeira nacional em outros estados da federação devido recair num processo anti-educativo e desprestigioso para a modalidade”.
Em contrapartida, a rua é o berço da capoeira, como afirmava Mestre Gigante: “Naquela época não havia academia. Somente no dia de domingo é que tinha vadiagem na rua. “
Em Brasília, a capoeira de rua, que começava a aparecer na segunda metade da década de 1970, era uma extensão da academia.
A forma pela qual os praticantes brasilienses viam a capoeira é completamente distinta dos antigos baianos. Mas a busca pelo aprimoramento físico, a utilização da musculação e inserção de técnicas de outras lutas na prática da capoeira não é exclusividade e nem criação dos brasilienses. Não deixa de ser uma herança de Mestre Bimba, que rompeu com a capoeira tradicional na técnica e ritualística. Criou seqüências de ensino para iniciantes e foi reconhecido como professor de educação física em 1937, quando pôde abrir a primeira academia de capoeira do Brasil, o Centro de Cultura Física e Regional.
Os capoeiristas de Brasília influenciaram na atual configuração da capoeira, principalmente pelas iniciativas de padronização e organização por meios federativos.
A capoeira é e sempre foi dividida e anacrônica. A capoeira de Brasília colabora na construção das técnicas e da estética da capoeira recente. As muitas descontinuidades desse processo, fazem da história da capoeira um campo fértil para pesquisadores e interessados.
V Grande Roda Brasileira de Capoeira - Ginásio do Caseb - 1980
Referências
ABREU, Frede. O Barracão do Mestre Waldemar. Salvador: Zarabatana, 2003.
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios. ed. 37. Rio de Janeiro: Record, 1986.
ARAÚJO, Paulo Coelho. A capoeira: A transformação de uma atividade guerreira numa atividade lúdica. Tese (Doutorado) – Universidade do Porto, Portugal, 1995.
CAPOEIRA, Nestor. Galo já Cantou. ed. 2. Rio de Janeiro: Record, 1999.
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
______. A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial 1850-890. Rio de Janeiro: Access, 1999.
SODRÉ, Muniz. Mestre Bimba: corpo de mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002.
VIEIRA, Luiz Renato. O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro: Sprint, 1995.
ZULU, Mestre. Idiopráxis de capoeira. Brasília: O autor, 1995.
Um comentário:
Faltou falar do grande Mestre Chibata!! Que lutou muito pelo reconhecimento da capoeira.
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