quarta-feira, 6 de abril de 2011

Nessa postagem, divulgaremos entrevista realizada pelo Mestre Falcão com o Prof. Lamartine Pereira da Costa, autor do livro Capoeira sem Mestre. O livro completa cinquenta anos de publicação em 2011. De uma certa forma, podemos dizer que o autor antecipou-se ao movimento de crescimento da capoeira e percebeu a importância que a capoeira viria a assumir no cenário cultural brasileiro.

A publicação é datada: é retrato de um momento em que se acreditava que a capoeira se fortaleceria como um método ginástico, ou como uma modalidade de luta, mais do que uma manifestação de forte conteúdo cultural, étnica e social. É um interessante registro de uma época da história da nossa capoeiragem.

Luiz Renato
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 CINQUENTENÁRIO DA PUBLICAÇÃO DO LIVRO CAPOEIRA SEM MESTRE

Mestre Falcão








Durante a realização do Primeiro Seminário de Pesquisa do Projeto Diagnóstico Nacional do Esporte, em Salvador-BA, entre os dias 05 e 06 de fevereiro de 2011, tivemos a oportunidade de dialogar com o Professor Lamartine Pereira da Costa sobre muitos assuntos relacionados ao mundo dos esportes, especialmente sobre temas relativos a diagnósticos, levantamentos e procedimentos de pesquisa de larga escala.

Em um dos intervalos do evento, no deslocamento para o hotel, o professor Lamartine nos concedeu essa breve entrevista.

Mestre Falcão: Professor Lamartine, gostaria de fazer uma pergunta sobre uma obra relacionada com a capoeira que o senhor publicou que parece se tratar de uma das primeiras referências sobre capoeira vinculada ao mundo da Academia, editada na década de 1960. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre esse trabalho e, também, qual a sua avaliação sobre a capoeira no Brasil atualmente, suas tensões e contradições.

Professor Lamartine: Em 1961 eu me tornei um praticante de capoeira, porque eu conheci umas pessoas que estavam envolvidas com isso. Essas pessoas eram da capoeira do Rio de Janeiro, que era uma capoeira bem diferente. Uma capoeira da Zona Sul. Uma capoeira de porrada. Por intermédio dessas pessoas com quem me liguei acabei conhecendo Artur Emídio, que ainda está vido. Um grande mestre de capoeira, primeiro na Bahia, depois no Rio de Janeiro. Tinha uma academia em Olaria, que era a única. Assim mesmo era informal. As reuniões eram em clubes. Variava de lugar. Acontecia principalmente na rua. Ele [Artur Emídio] tinha um grupo. Depois e um ou dois anos de treinamento com o Artur Emídio eu cheguei à conclusão que era interessante ter alguma coisa publicada para servir de base para os cursos que eram muito improvisados. Ai eu fui, ou melhor, vim à Bahia, porque agora estamos na Bahia e entrevistei os capoeiras que eram aqueles caras manjados, o Pastinha [...]. Não tinha uma coisa muito ampla, mas já existiam aqueles caras santificados na capoeira, né. Eu notei que era uma capoeira diferente porque Artur Emídio era um homem do Vale-Tudo, mas mantinha a tradição da Bahia. Não sei se vocês sabem disso. Ele era aqui da Bahia e chegou lá no Rio com esse negócio de Vale-Tudo, desafiando muita gente. Quase mataram ele. Ele tem uma história, esse camarada, manteve a capoeira nas suas origens. E é por isso que ele sugeriu que eu viesse à Bahia e eu gostei dessa idéia. Eu consegui fotografar, porque os caras faziam um certo mistério. Eu pedi que descrevessem os golpes, pois eu percebia a variedade de interpretação dos golpes. Enfim, eu fiz um manual muito simples. Naquela época eu não era um cara acadêmico.

Mestre Falcão: O Senhor não era estudante de Educação Física na época?

Professor Lamartine: Em 1961, não, mas eu vivia metido em diversos esportes, inclusive lutas e acabei caindo na capoeira lá no grupo que fazia parte. Mas, ao voltar ao Rio eu consegui publicar, mas pagando com o meu dinheiro. Não tinha nenhum livro sobre o tema pelo menos visível. Tinha um livro que eu vi na Biblioteca Nacional de 1908 e um outro de 1932. Então eu fiz esse livro que poderia ser o terceiro, não é? Que não era grande vantagem porque a capoeira era proibida pela polícia até os anos 1940-1950. Mas no Rio de Janeiro se contava a dedo os caras que mexiam com a capoeira da Bahia. Então lá na Zona Norte do Rio era só o Artur Emidio e o Djalma Bandeira. Tinha um ou outro cara que vinha da Bahia e passava uma temporada por lá e ficava por isso mesmo. Mas o livro teve muito sucesso porque eu distribuí para algumas revistas e as livrarias aceitaram exemplares sob condição de pagamento posterior...

Mestre Falcão: E, então, como se deu a divulgação do livro?

Professor Lamartine: Partiu no início do próprio Grupo Emídio-Bandeira e depois foi capilarizando por meio do boca-a-boca. Mas um ano depois apareceu a Editora Technoprint, do Rio, que me fez uma proposta de colocá-lo na coleção deles de livros de bolso, sob a denominação de "CAPOEIRA SEM MESTRE". Mas o nome original era "Capoeiragem- A Arte da Defesa Pessoal Brasileira" já transparecendo uma intenção minha de se ter uma obra mais sistematizada diante da improvisação e da tradição oral dominante na época. Esta obra original sobrevive como memória na Biblioteca Nacional e eu tenho passado copias a quem solicita.

Mestre Falcão: Professor, o senhor pode falar um pouco mais sobre a capoeira no Rio de Janeiro durante esse período em que o seu livro foi lançado?

Professor Lamartine: Havia um grupo ligado ao Sinhozinho que era o líder da capoeira na tradição do Rio de Janeiro muito voltada para a luta de rua, que se confundia com o "vale-tudo", modalidade que vinha do exterior e possuía programas na TV à época. Mas o pessoal do Sinhozinho era sério e cultivava técnicas próprias que se misturavam com a capoeira da tradição baiana, com o Jiu-Jitsu, já se recriando em versão brasileira dos irmãos Gracie de Belém do Pará. A expressão Capoeiragem era corrente entre os seguidores do Sinhozinho, que segurou a tradição da capoeira carioca que vinha do século 19, a qual foi a modalidade proibida pela Polícia.


Mestre Falcão: Qual a repercussão desse livro? Qual foi a tiragem do mesmo? Ele foi publicado em outras línguas?

Professor Lamartine: O livro em si somente teve penetração no Brasil, atingindo certos lutadores dos EUA que chegaram a me escrever mais por curiosidade. Como eu notei interesse e manejava bem inglês e francês fiz artigos para revistas do exterior e consegui publicar o que aparentemente foram os primeiros trabalhos técnicos sobre o tema fora do mundo de língua portuguesa. A partir dai e ate hoje recebo mensagens de fora do país me consultando sobre a capoeira, habitualmente da Bahia, pois a versão carioca (Sinhozinho) se diluiu no tempo. Por esta razão, o Atlas do Esporte do Brasil (2005), que fui editor, apresenta dois capítulos sobre a Capoeira, um da tradição baiana e outro de memória sobre a versão carioca.

Mestre Falcão: Ao que parece, depois daquele livro o senhor não produziu mais nenhuma obra relacionada com a capoeira? O que aconteceu? O senhor se sentiu desestimulado com esse contexto? O que o fez perder o interesse pela capoeira?

Professor Lamartine: Não me senti desiludido, mas percebi que passei a ser visto como competidor dos mestres da tradição. Alguns até começaram a me hostilizar e então achei que tinha de ir para outra praia, a do lado da ciência de maior comprometimento na minha carreira de professor de educação física que à época era meu maior empenho. E não abandonei totalmente a área, apenas fiquei mais discreto... Tenho contribuições de apoio - a do Atlas 2005, por exemplo -participação em bancas doutorado e mestrado no tema (incluindo Portugal) e tenho ate produção recente sobre iconografia da capoeira. Em resumo, meu interesse hoje é sobretudo acadêmico, pois passei a quem de direito os impactos positivos que consegui produzir, isto é, para os mestres em atividade, vetores culturais da capoeira no tempo presente.

Mestre Falcão: Professor, o que o senhor acha do movimento atual da capoeira? Qual a sua avaliação sobre a atualidade desse fenômeno que se expandiu para todos os continentes?

Professor Lamartine: O crescimento da Capoeira se explica pela natureza dela mesma: é uma luta de raiz cultural, de espontaneidade, além de nacionalidades e da ciência. Foi para o mundo e tem sido aceita e nós, brasileiros que a perceberam e a cultivaram, fomos as alavancas de apoio inicial a este movimento. Saravá!

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